Quem quer abraçar duas pedras? Demonstrar por elas a sua admiração e gratidão tranquilas? Os dois bustos eram o melhor desfecho que a vida de cada um dos nossos beneméritos, às vezes cheia de aflição, merecia. Ditosamente, Luiz e António não estavam sozinhos a tentar saber dos pobres, a conhecê-los pelo nome. No ano anterior à sua morte, dois meses antes do descerramento dos bustos no hospital, em fevereiro de 1939, outra sumidade local, o conde, tinha sido homenageado. Os três homens, Ribeiro, Júnior e Garcia, já estavam guardados na toponímia da vila, dois com nome de praça e o outro com nome de rua. Foi dois meses antes dos bustos serem colocados junto às paredes alvas do hospital que o conde Garcia, numa ‘justa homenagem’ a uma ‘alma radiosa’, tinha sido perenemente glorificado na sua praça. O conde já tinha a sua imagem reproduzida na sacristia da igreja matriz e nas escolas primárias.
O mais magnífico dos retratos, feito a óleo, tinha sido colocado na galeria dos beneméritos mais distintos do hospital, perto de Luiz Ribeiro e de Oliveira Júnior. A estátua do conde era, em fevereiro de 1939, o ponto culminante da gratidão. Pela enésima vez, Garcia voltou a ser cabeça de cartaz, desta vez no número quatrocentos e quarenta e cinco do jornal local. A devoção não tinha urdidura. Enquanto crente convicta, Beatriz Augusta Tovar escreveu então mais um soneto de louvor e comoção, quando o bem-estar físico e psíquico do conde começava a definhar e a ralar a família. Lemos a primeira quadra:
Espírito rasgado em plena luz!
A alma iluminada de esplendores!
Fica para além da frase que traduz
Toda a expressão singela dos louvores.
E também o último terceto:
A sua nobre estátua, como um templo
Aonde todos vão buscar exemplo
E vão depor os próprios corações.
Dois meses passaram. Em Lisboa, em fevereiro de 1939, Salazar, que andava a preparar com afinco, em Belém, a ‘Exposição do Mundo Português’, promove no Terreiro do Paço mais uma manifestação corporativa, juntando os ‘sindicatos nacionais’ às ‘casas do povo’ na aprovação do Estado Novo. No mês seguinte, com cada vez menos vagar para a serenidade e para a reflexão, Salazar recebe o embaixador espanhol para assinar um tratado de amizade e de não agressão com Franco, que estava a uns dias de derrotar os republicanos e acabar com a guerra civil. Torna-se penoso seguir os acontecimentos. Fixemos as formalidades, as obrigações cívicas e algumas, poucas, palavras técnicas. Estamos num ano com muito mais sombras do que claridade, atordoados, sem remédio, com a serpente, a poucos meses de uma queda fatal na guerra. Por cá, na nossa terra, por enquanto, os espíritos andavam mais joviais e bonacheirões.

O receio ainda parecia uma realidade externa e longínqua. Era domingo, dia 16 de abril de 1939, com a missa matinal e a revelação da fé pessoal de cada um. No rasto solene de Oliveira Júnior e de Luiz Ribeiro, dois homens com pergaminhos e com simetrias éticas e morais semelhantes, homens que se fizeram a si mesmos, a homenagem começara às dez horas da manhã com a celebração na igreja matriz, muito concorrida, em sufrágio das suas almas. O silêncio foi longo, mas todos, fixando a atenção, com destaque, na primeira fila, para o filho mais velho de um dos homenageados, queriam ouvir as palavras de um padre da terra, perito no amor divino e amante incondicional da música.
As ruas que ligavam o Largo 11 de Outubro ao hospital encheram-se de gente depois do almoço. Nos dois lados da entrada do hospital, dois bustos, tapados pela bandeira nacional, estavam prontos a ser descerrados. O cortejo era enorme, com os figurantes habituais. Autoridades locais, personagens como o médico Joaquim Milheiro, um dos responsáveis pelos dois monumentos, e coletividades com os seus estandartes juntaram-se às crianças das escolas primárias e ao povo anónimo, à banda de música, aos bombeiros, à ‘Liga dos Combatentes da Grande Guerra’, aos representantes dos sindicatos corporativos, o dos chapeleiros e o dos sapateiros. Uma enorme tribuna muito colorida pelas flores, que se iria cobrir de gente, estava montada na entrada do hospital. Foi ali que tinha guardado lugar a família de um dos beneméritos homenageados, Oliveira Júnior. O presidente da ‘Comissão Executiva dos Monumentos’, o doutor Milheiro, convidou o provedor do hospital, José António das Neves, para presidir à cerimónia. Neves declinou o convite e sugeriu, em seu lugar, o nome de António José Pinto de Oliveira. Pouco à vontade com o convite, parecendo assemelhar-se ao pai, o patrão da Oliva acaba por aceitar. Senta-se no centro da mesa, ladeado por Benjamim Valente da Silva e José António das Neves. Por trás, a tribuna enchera-se de notáveis da vila: muitas senhoras e senhores; alguns jornalistas; o administrador do concelho, Inocêncio Leal Pereira; o delegado escolar, professor Costa Ferreira; o comandante da Guarda Nacional Republicana; António Diamantino; Manuel Nicolau da Costa; Manuel Luís Leite Júnior; Manuel Vieira Araújo; e o inefável padre Almeida e Pinho, o orador principal.
Duas meninas, Darcy Diamantino e Edina Oliveira, descerraram então os bustos de Ribeiro e de Júnior. Depois da banda de música executar o hino de S. João da Madeira, começara o tempo dos oradores. Primeiro Joaquim Milheiro, com um curto, mas bem preparado discurso. Seguiu-se o padre Almeida e Pinho, com mais uma bela lição de oratória. Escutemos o que disse então sobre os dois beneméritos. Primeiro, sobre Ribeiro: ‘Sanjoanense humilde, vivendo a sua mocidade entre os humildes de outrora, conhecendo bem de peito as privações e os poucos recursos das classes trabalhadoras deste meio industrial, já no seu tempo bastante desenvolvida – Francisco Ribeiro, alma fundamente compassiva, confrangendo-se ante o sofrimento alheio, sonhou um dia que um hospital na sua terra teria um nobre alcance social e uma vez tornado realidade viria minorar as enfermidades dos seus conterrâneos, falhos de recursos materiais, para as debelar convenientemente’. O padre Pinho lembrou como aquela intenção fora a sua constante preocupação no último quartel da sua existência. Infelizmente, a fortuna que tinha amealhado no outro lado do mar não era suficiente para a construção de um projeto tão ousado e grandioso. Mas foi seu – voltamos a seguir o padre – ‘o mérito indiscutível de ser o primeiro sanjoanense que legou à sua terra todos os seus valores para a edificação do primeiro e único hospital existente em S. João da Madeira, embora posteriormente ampliado e melhorado por donativos de outros respeitáveis beneméritos’.
E o que dizer de Oliveira Júnior, ativo e prestimoso, ‘alma de eleição’, que fez o orgulho e a honra da nossa terra? Desta terra que ‘ele tanto amou e tanto ajudou a engrandecer com a sua atividade industrial – desta terra que tanto beneficiou dos seus valiosos préstimos e dos seus nobres exemplos’. Uma alma de eleição, repetiu, que deu ‘à sua terra o que tinha de mais belo e nobre – deu--lhe a sua inteligência, o seu coração, as energias da sua alma generosa e boa’. O padre Pinho tinha a crença firme de que Júnior consagrara a sua existência ao bem: ‘ele via em cada pobre um irmão, feito à sua imagem e semelhança, olhando com infinita ternura para todos os desprotegidos da sorte’. Quem se recordava ainda dele, que morrera há quatro anos, sabia como aquela ‘mão abençoada escondia o óbolo generoso com que tantas vezes mitigou a fome, cobriu a nudez e deu conforto aos infelizes’. Com o ‘Asilo dos Órfãos’, que fundou, com o ‘Fundo de Assistência aos Pobres’, que instituiu, cristalizações da beneficência; com a ‘Santa Casa’, que, desde a sua fundação, serviu com determinação como provedor. Ao escutar as palavras do padre, o filho de Júnior emocionou-se. No início, não se importando com a opinião dos outros, António José Pinto de Oliveira resistira à cerimónia que estava agora a presidir. Lembrava-se bem do pai o nosso empreendedor: ‘Conhecedor natural do seu horror pela evidência, pedi, como ele próprio pediria, que nada disto acontecesse. Persuadiram-no a estar presente. Afinal de contas, admitiu o dono da Oliva e da Sanjo, a sua relutância pelo monumento, contudo, não significa indiferença pelas manifestações de carinho pelo meu pai’.
Como diria repetidamente o padre Pinho, os corações nativos tinham de manter-se, resistentes, como um altar vivo. Desse altar brotaria, perpetuamente, ‘o perfumado incenso da nossa gratidão’.

