Sociedade

Joana Galhano: “Gostaria de ver mais visitantes da cidade a usar o museu”

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Desde o início da pandemia os museus sanjoanenses registaram uma quebra de 70 %.

Jornal ‘O Regional’ - Com a saída de Suzana Menezes para a Direção Regional da Cultura, assumiu a direção do Museu do Calçado e do Museu da Chapelaria. Como foi essa transição?

Joana Galhano - Foi um convite que me honrou pelo voto de confiança e reconhecimento do trabalho que desenvolvo desde 2005, a que se soma o apoio da Suzana Menezes e sem o qual não me seria possível aceitar. Com as opções programáticas de 2019 definidas, a transição surge naturalmente, no entanto, a responsabilidade de dar continuidade a estes dois museus, por toda a ligação a S. João da Madeira e potencial de afirmação internacional, tem sido um desafio constante. 

Como consegue conciliar a direção simultânea de dois importantes equipamentos culturais do município, sendo que os mesmos têm uma dimensão nacional, pelo facto de serem os únicos no País dedicados à Chapelaria e ao Calçado, respetivamente?

Com uma responsabilidade muito grande alcançada com muita perseverança e desejo pessoal de relevar ainda mais o nome e o trabalho dos museus. Isto só pode ser conseguido com o apoio das suas equipas e a confiança da equipa política. Ambicionamos chegar mais longe e estamos a trabalhar nesse sentido. 

Faz sentido dizer que a criação do município de S. João da Madeira assenta, em grande medida, na pujança da sua indústria e, em particular, da chapelaria?

Afirmaria antes que o desenvolvimento de S. João da Madeira assenta no crescimento da indústria da chapelaria e do calçado e no valor do seu setor social, educativo e cultural. No início do século XIX, a indústria chapeleira ganha força marcando-se por uma capacidade e qualidade produtiva, aliada a uma visão de renovação e aposta na inovação técnica, em particular, no fabrico do chapéu de pelo e sua mecanização. O setor do calçado inicia o seu desenvolvimento em final do século XIX denotando-se o rápido florescimento da pequena oficina que se mecaniza e dará origem à grande fábrica. Sustentando-se numa produção de qualidade, inicialmente direcionada para o mercado nacional, o setor dará passos para a internacionalização, apostando na criação da marca própria e trabalho em outsourcing

Mas esta pujança industrial é acompanhada por um forte desenvolvimento social e cultural…

É verdade e que reúne em S. João da Madeira um vasto conjunto de serviços e infraestruturas como o teatro, cemitério, farmácia, hospital, luz elétrica, escola ou a imprensa. Assim, quando o Governo concede a emancipação a S. João da Madeira, ele reconhece a cidade como “o centro industrial mais importante do distrito de Aveiro” e enaltece o valor da sua comunidade e conquistas educativas, sociais e culturais até então alcançadas.

Quanto ao calçado, e enquanto responsável do museu que lhe é dedicado, o que nos pode dizer sobre a importância deste setor no desenvolvimento e afirmação de S. João da Madeira como polo industrial?

O crescimento do setor deve-se muito à sua vocação para o mercado externo tendo tido um impacto muito forte no mercado de trabalho especializado. A este, associa-se o crescimento local do setor dos componentes e a criação da Academia do Calçado e do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal, ambas com um papel determinante na capacitação de mão-de-obra, no desenvolvimento de futuros designers e no apoio técnico e tecnológico do cluster do calçado. 

Os museus são, muitas vezes, espaços para se ir ao encontro do passado. Nos casos dos museus que dirige, podemos dizer que há também relevantes vertentes voltadas para a atualidade dos dois setores e até para perspetivar o futuro… Porquê essa aposta?

Porque preservar e retratar a memória da indústria da chapelaria e do calçado em S. João da Madeira está no cerne dos museus, mas a sua função não se esgota aí. A cultura e criatividade são fatores determinantes no desenvolvimento da sociedade e sua indústria, pelo que se pretende que os museus se possam posicionar no tempo presente apontando caminhos futuros. Só aí a indústria e setores criativos poderão apropriar-se dos seus acervos e exposições, tomando-os como ferramentas de investigação e fontes de inspiração, tanto quanto a sociedade lhes exige serem espaços de aprendizagem, de criatividade e de experimentação.

 

“Os museus procuram homenagear a indústria da chapelaria e do calçado”

 

A realização de exposições temporárias com designers internacionais de sapatos e de chapéus tem sido uma das marcas da atividade dos museus, com a presença dos próprios artistas em masterclasses dirigidas a quem se está a formar nessas áreas. Que balanço faz dessas iniciativas e como tem sido a reação dos formandos e da própria indústria?

Têm sido muito positivas e com a participação de um elevado número de pessoas do ensino superior e cursos profissionais, de designers e jovens criadores. Estes programas fortalecem a ideia dos museus enquanto espaços abertos a um mundo global, inovador e criativo, assumindo-se os mesmos como espaços de reflexão e onde o passado da indústria se encontra com o seu presente e o questiona.

Dada a vertente industrial de ambos os espaços, têm sido, certamente, mantidos contactos com as fábricas sanjoanenses e com atuais e antigos industriais e trabalhadores. Qual a relação dos dois museus com as empresas de cada um dos setores?

Os museus procuram homenagear a indústria da chapelaria e do calçado apresentando coleções equilibradas tanto geograficamente quanto na representatividade criativa e empresarial. Isto não seria possível sem o apoio dos seus atores como sapateiros e chapeleiros, operários e administradores, agentes do setor criativo, associações e entidades especializadas. Com modalidades de colaboração distintas, estas acontecem na doação de peças, na partilha de conhecimentos e materiais, na dinamização de eventos temáticos e, mais recentemente, na inclusão em projetos culturais. 

A temática de ambos os museus e esta colaboração parece-me que vem reforçar, entre todos, um sentimento de grande orgulho, no contributo que deram e que se revela nas colaborações que continuam a dar aos museus. 

Não é raro ver as empresas a trazer aos museus os seus clientes como forma de promoção empresarial ou os seus atores a chamarem aos museus os seus familiares e amigos. Esta ligação, profissional ou afetiva, é conseguida com o seu envolvimento na atividade dos museus e pela permanente valorização do património que representam. Fazendo eles próprios parte dos museus, é extraordinário dizer “queria convidá-lo a participar neste projeto” e ouvir um “pode contar comigo”. E esta frase diz-me que estamos no caminho certo.

 

Pandemia reduz visitas em 70% 

 

Os dois museus fazem parte dos circuitos de Turismo Industrial de S. João da Madeira, juntamente com outras instituições e com fábricas do concelho de diferentes setores. Na sua perspetiva, o futuro da indústria passa também pela sua afirmação como produto cultural e turístico? 

O futuro da indústria poderá, talvez, passar pela conjugação dos eixos Cultura - Turismo - Criatividade. Aliando a diversidade industrial e patrimonial do território com as mais valias de cada eixo, pode-se criar um importante recurso para uma maior valorização de entidades, atratividade de públicos e competitividade empresarial. Com o Museu da Chapelaria, Museu do Calçado, Turismo Industrial, Oliva Creative Factory e Centro de Arte já a atuar nestes eixos, penso que a indústria local só poderá beneficiar das sinergias que possa criar com eles. 

De que forma é que a pandemia tem afetado o funcionamento dos museus e que reflexos essa realidade tem tido no número de pessoas que visitam estes equipamentos?

A pandemia ditou a reformulação das dinâmicas de trabalho e atuação com públicos. Ao encerramento dos museus, somou-se a redução do quadro de pessoal e da atividade, terminando 2020 com uma quebra de 70% no total de públicos, valor que vai de encontro à realidade nacional. Para debelar estas dificuldades, manteve-se o Serviço Educativo em atividade e reformulou-se a programação dos museus com o adiamento das novas exposições para outubro e de outras atividades para 2021. Internamente além das ações de investigação e inventário de acervos, fez-se o desenho de novos projetos, como o das visitas virtuais, a lançar em breve. 

Desde a sua abertura quantos visitantes recebeu o Museu?

Até final de 2020, o Museu da Chapelaria recebeu 292.311 visitantes e o Museu do Calçado, 41.962 visitantes.

As escolas são o vosso público alvo?

A programação cultural dos museus é desenhada atendendo às necessidades e fatores de atração de públicos escolares, mas também de público sénior, públicos com deficiências, famílias, grupos turísticos e públicos do setor empresarial e criativo.  

Mas há muita gente a visitar vindos de vários pontos do país?

Os museus exercem maior influência nas áreas geográficas que lhe são mais próximas, como os distritos de Aveiro e Porto. Segue-se Braga, pela ligação à indústria da chapelaria, Viseu, Coimbra e Lisboa. Nos públicos estrangeiros, Espanha lidera, seguindo-se França, Brasil, Alemanha, Holanda, Grã-Bretanha e Itália. A título de curiosidade, devo dizer que os peregrinos que fazem o Caminho de Santiago têm o Museu da Chapelaria como ponto de referência para receber o carimbo de passagem e para visita “obrigatória”. 

Mas os visitantes surpreendem-se ao saber que o feltro vem do pelo de coelho ou de castor ou com a perceção do processo complexo que é a produção de um chapéu?

Sempre e cada vez mais! Afinal com o desuso do chapéu também se foi perdendo o conhecimento sobre o mesmo. Mas é muito interessante ver as reações do visitante ao longo da visita pelo fabrico de feltros e a forma como passa a compreender o ecossistema do feltro e da sua indústria, em particular no que concerne à aplicação dos princípios da economia circular e da produção sustentável. 

 

“A conservação de acervos é um trabalho muito delicado”

Como é que acha que os sanjoanenses olham para este museu?

Gosto de pensar que a comunidade se sente orgulhosa e se revê nestes dois importantes espaços do saber-fazer e da inovação. Procurou-se homenagear duas grandes indústrias e um vasto tecido social, mas acho que o conseguimos fazer todos os dias. Porém gostaria de ver mais visitantes da cidade a usar os museus, a apropriarem-se dos seus espaços. São locais ideais para a partilha, a descoberta e a diversão. Aqui, a cultura, o conhecimento e a educação andam de mãos dadas.

Mas ainda há pouco tempo existiam pessoas na cidade que ainda não o tinham visitado…

É natural, mas isso não significa que não virão nunca visitar os museus. Os museus têm oferecido à comunidade local um conjunto de mais valias como a gratuitidade da entrada nestes equipamentos, a oferta de atividades educativas em contexto exterior, o reforço da comunicação local e o desenho de projetos diferenciadores e que cheguem a todas as camadas da sociedade. 

A vossa missão passa também por preservar máquinas, mas igualmente as pessoas que estiveram atrás delas e as suas histórias de vida. Tem sido uma das mais-valias dos museus?

Ambos os museus desenvolvem ações de recolha e salvaguarda da memória oral sobre o setor da chapelaria e do calçado com o apoio de um vasto conjunto de atores. O resultado destas ações é visível nas fotografias e testemunhos que habitam os museus, assim como nas visitas temáticas que convidam à partilha com estes atores. Desejando-se um museu vivo, os visitantes são convidados a ouvir as histórias de vida de antigos operários, a observar a magia por trás dos seus gestos, a emocionar-se com a sua paixão pela arte. Estas são experiências profundamente enriquecedoras para o visitante.

De que forma é feita a conservação de todo o espólio?

A conservação de acervos é um trabalho muito delicado, complexo e moroso e é determinante para a sua continuidade ou destruição. Um sistema AVAC funcional, desumidificadores, equipamento de monitorização da temperatura e humidade, tecido não tecido, papel vegetal, sílica gel e anti traça são elementos chave para a conservação. Assegurada pela equipa interna, esta requer ações regulares de limpeza e verificação, às peças e espaços, para prevenir a acumulação de detritos, infestações biológicas, identificar alterações físicas e determinar a aplicação de ações corretivas. 

O concelho chegou a ter 200 fábricas de chapéus na década de 1920. Muitos nomes internacionais já se associaram aos museus. Acha que trouxe mais visibilidade?

As relações criadas com os designers internacionais criaram uma maior abertura para os museus, para a cidade e a indústria se divulgarem. Há uma maior exposição à imprensa internacional e desenvolvimento de novos contatos com atores do setor chapeleiro e do calçado. Os museus são reconhecidos na qualidade das suas propostas o que reforça, também, a sua capacidade de atração de novos públicos. 

Estamos a falar de nomes como o Filipino Kermit Tesoro, que já calçou figuras como a Madonna e a Lady Gaga e que doou duas das suas peças ao Museu do Calçado…

E quase todos os designers e artistas com quem colaboramos contribuíram com a doação de peças, o que é, acima de tudo, reconhecimento pela qualidade técnica e científica destes equipamentos. Temos recebido peças magníficas, algumas das quais criadas propositadamente para os museus, como o chapéu “Bacalhau cozido com grão de bico” de Maor Zabar ou o “Polypodis”, de Kermit Tesoro, e outras onde, ironicamente, se encontrou uma ligação a S. João da Madeira, como o sapato “Lápis” de Kobi Levi.

 

Caixa com foto:

Tem 40 anos, é natural de Águeda e assume a direção do Museu da Chapelaria e do Museu do Calçado desde janeiro de 2019.
Joana Galhano é licenciada em História pela Universidade de Coimbra, frequentou um estágio durante um ano na Caranguejeira, em Leiria, e integrou um projeto de investigação especificamente relacionado com a Empresa Industrial de Chapelaria e a indústria chapeleira em S. João da Madeira. Em 2005, integrou a equipa do Museu da Chapelaria, desenvolvendo atividade no Serviço Educativo e continuando a dinamizar ações de investigação no setor da chapelaria e do calçado. Foi responsável pelo Centro de Documentação do Museu da Chapelaria. Colaborou, desde cedo, na curadoria das exposições temporárias de ambos os museus.

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