Aos fins de semana, em qualquer estação do ano, os nossos fregueses mais elegantes e sofisticados, de estatuto social mais elevado e classe social mais favorecida, apreciavam as idas ao mar. Não havendo na nossa terra muitos condutores de automóvel, o comboio a vapor ainda era uma boa solução para chegarmos a Espinho e ao Atlântico. Para alguns de nós, com a água pelos joelhos e dinheiro no bolso, com frio ou com calor, o ar seco ou húmido, os sábados eram os dias mais apetecidos para a partida. Saíamos cedo de casa, descendo a rua, a do doutor Maciel, esperando que o comboio não se atrasasse a chegar à estação. A linha não era muito comprida, mas, com tantas curvas e mais curvas escondidas, a velocidade era de cruzeiro. O exercício era incómodo, lento e demorado. Em Espinho, junto ao mar, poupando-nos a esforços, com pouca coragem para fazer perguntas e algum bom senso, costumávamos procurar a rua cinco e o número 579. Ali nos recebia o João Rodrigues, para almoçarmos, jantarmos ou dormirmos. No inverno, a nossa dúvida era sempre a mesma: vai chover muito, fazer muito vento, este fim de semana? Mas valia a pena ir a Espinho, sobretudo no verão, deixar a nossa aldeia e beneficiar da brisa marítima, sobretudo os que de nós eram os mais fracos, os mais moles e apáticos; irmos à praia bem cedo, em julho ou agosto, vestidos com fatos de baeta azul ou preta, e darmos pelo menos três mergulhos contra as ondas curativas, mesmo que nenhum de nós soubesse nadar; andarmos depois, até no inverno, pelo ‘casino’, o centro da vida cosmopolita e das doces nostalgias de Espinho; ou darmos um passeio a pé pela praia, onde éramos quase todos mais sãos para admirar os cafés ruidosos, ouvir um concerto e encontrar alguns espanhóis distraídos, cheios de diversão e prazer pelos jogos de fortuna e de azar.
Os nossos cidadãos que frequentavam Espinho, mais que o Furadouro, eram quase todos capitalistas e proprietários. Nem todos iam a banhos, como aconteceu a três dos nossos conterrâneos no dia 13 de fevereiro de 1922. Estamos a ver o automóvel de António Madureira, parado na ‘Praça’, junto ao seu armazém de miudezas e de produtos para acabar chapéus. O senhor A, industrial, e o senhor L, comerciante, acabam de entrar no automóvel de Madureira. Os nossos três cidadãos rumaram ao mar. Iam almoçar no ‘Avenida’, o novo ‘Avenida’, na rua 5, que João Rodrigues e o filho tinham andado a remodelar. Desconhecemos o cardápio, mas sabemos que o almoço durou bastante tempo. Os nossos três conterrâneos tinham o hábito de beber café, de ler jornais como ‘O Regional’, de perder tempo em cavaqueiras, diz-se até de esconderem alguns amores mais ou menos proibidos. O dia parecia um atoleiro de frio e de humidade. Os três fregueses sabiam que o repasto ia ser longo e controverso. O senhor A e o senhor L traziam consigo os últimos jornais da região. Falavam sem parar, não se poupando a esforços, com bom senso e moderação. Sabemos como todos eles, com consciências tranquila, davam relevância à vida em família e ao progresso da terra que todos amávamos, à sua medrança. Os anos continuavam a passar, mas a voz não ficava mais grossa, evitando emoções baixas, como o ressentimento ou a vingança, pugnando por sentimentos nobres, como a abnegação ou a devoção. Se a lembrança não me engana, bastava fechar os olhos e imaginar o mundo à nossa volta.

As cabeças não podiam ficar completamente frias. O senhor A, como sabemos, tinha de voltar a falar da instrução. Imaginara alguns casos de penas severas a aplicar diretamente às crianças pobres que faltavam à escola. A conversa do senhor A não era para brincadeiras, tinha-se preparado muito para falar. Ouçamo-lo, como se o senhor A estivesse a ler, soletrando, pausadamente: ‘Que pena que não mete, senhores, ver crianças de idade tão curta e ossos tão tenrinhos, olhitos mal abertos de um sono mal dormido e levado a tiritar de frio que trapos de escassa roupa não pudesse evitar durante a noite, por estas manhãs frias de inverno, o corpinho delgado coberto de andrajos que deixam os ossos descobertos, sibile a nortada cortante ou lhes fustigue a carita uma chuva repuxada pelo vento de oeste, estejam os caminhos tão endurecidos pela geada caída de noite que o não seriam mais se pedregulho afiado os cobrisse, ou uma chuva miudinha e fria lhes regele os ossos, que pena não mete, senhores, diríamos nós, ver essas criancinhas mal saídas ainda do peito materna, pezitos descalços, a saltitar por sobre a neve, a correr lestos por sobre a lama, a caminho das fábricas’. O senhor A olhou pela janela, quase a avistar o mar. A sua vontade era ter aquelas crianças perto de si, aguentá-las à braseira, sem míngua de lenha, e levá-las logo a seguir à escola, para os educar e fazer homens. Na sua casa, a abundância não faltava; na sua fábrica, tinha-o determinado com finca-pé, as portas estavam fechadas às crianças pobres.
O senhor A andava preocupado com os desgraçados que viviam nos lares sem comodidade, lá fora, ‘onde muito se sofre e muito se luta pela negra côdea de pão que há de ajudar a tragar dois golos de mal adubado caldo que vão matar a fome’... O senhor A já tinha lido e ouvido falar muito sobre aquela sordidez. Os senhores industriais de S. João da Madeira tinham muito a fazer, disse o senhor A, ter mais cuidado e precauções com os desprotegidos da sorte, as crianças pobres e infortunadas. Podiam começar por subir os salários dos pais, para que não forçassem os filhos a ter de ‘ganhar a vida’. O senhor A olhava para a instrução como a economia, o que quer dizer, como a base da riqueza. Ora, se havia operários bem pagos, outros havia, talvez a maioria, que o não eram. Os outros dois comensais, o senhor L e António Madureira, calados, continuaram a ouvir o senhor A: ‘Pois bem: pagai a todos como a consciência vos mandar; aliviai-lhes o sofrer; minorai-lhes o travor da vida; mitigai-lhes as amarguras da existência e depois, sim, depois é um dever, é um favor, é um serviço prestado à humanidade inteira, obriga-los a que mandem os filhos à escola, sob pena de não os admitir enquanto não saibam ler. Mais tarde são as crianças de hoje que bem dirão a vossa memória ou honrarão a vossa velhice’. O senhor A não queria ter uma cabeça leve, desmiolada e olvidada. Muito bem: que o desculpassem, se não pensavam como ele, mas tinha uma particular intolerância à injustiça. Interessava-se pelo bem-estar dos outros, em particular pelos que moirejaram, a vida inteira, como acontecera com ele. Era um autêntico bairrista, o senhor A: formosa pela indústria, S. João da Madeira seria ainda mais bela com o fulgor da ciência. Sem pés descalços, não havia desculpas nem circunstâncias adversas ao progresso local.
É possível que, algumas vezes, durante a conversa, o senhor A tenha sido interrompido pelos dois confrades, sentados do outro lado da mesa. O ar estava quente, o robalo magnífico. Bebia-se e fumava-se. A instrução, considerava o senhor A, não era um jogo de sorte ou de azar. Sabemos como julgava as tabernas e a forma como os seus conterrâneos reagiam aos seus riscos. O trambolho em que se tornavam alguns dos operários da sua fábrica, com a boca cheia de minhocas. Numa palavra, os operários tinham de ser ajudados, com dinheiro e com valores. Entretanto, o consentimento não chegou ao outro lado da mesa do ‘Avenida’. Cioso do seu nome, o senhor L tinha dúvidas acerca das dores de crescimento da nossa terra. O senhor L abriu um longo parêntesis. Alguém lhe ensinara também a apertar o cinto. Não queria ser desmancha prazeres, mas a sua cabeça ficava muito determinada e resoluta quando se falava dos trabalhadores e das suas famílias. Também ele lia os jornais, também ele tinha opiniões certas e consolidadas. Recordou, então, à mesa, Júlio César Machado e um modo de ser e de estar muito nosso: ‘O português tem duas aspirações: primeiro, ser funcionário público; segundo, depois de o ser, não fazer nada’.
O senhor L adequou o seu relato às circunstâncias. Naqueles dias, na nossa terra como no país impreciso, confirmava-se o paleio e a treta das lutas operárias: primeiro, era lutar pelo máximo salário, segundo, era fazer o mínimo esforço. Ouçamos o senhor L: ‘Ganhar o máximo, trabalhar o menos. Exigir os maiores salários, produzir o menos, eis o que, desde há certo tempo a esta parte, se vem resumindo as aspirações mal orientadas da parte dos operários portugueses, que assim caminham, inteiramente às cegas, para a própria ruína, quando tiverem causado a ruína dos industriais’. Portugal estava em crise, lembrava o senhor L. Era medonha a carestia de vida. Infernal, também, a deficiência produtiva. A Europa aguentara a guerra, com tantos braços ceifados; Portugal padecia ainda mais que os outros, com tanta gente que não queria trabalhar. O senhor L acertou na mouche: quanto mais subiam os salários, mais o custo de vida aumentava. Era necessário, segundo o senhor L, sair para fora do círculo vicioso. Com coragem, determinação e vontade. Se o custo de vida descesse não havia necessidade de aumentar os salários. Para assim salvar a indústria, incipiente como a nossa. E consolar, concluiu o senhor L, ‘os operários explorados por criaturas sem escrúpulos’.