Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Que memórias guardamos de José Cerqueira de Vasconcelos, o diretor do nosso colégio? Pela minha parte, que o conheço mal, lembro-me das suas litanias e audácias verbais. Pressuroso e disciplinado, a toque de caixa, o nosso diretor dispensava os equívocos e os quiproquós. Não suportava, entre docentes e discentes do seu colégio, laivos de desdém ou de hostilidade. Não o imagino a viver na lua, estouvado, tonitruante, a arfar, ainda que, com as rotinas de Salazar e os seus comprimentos de onda, andasse por lá perto.
Em tempos autoritários, totalitários em várias regiões da Europa, o nosso ditador de Santa Comba era um caso de sedução. Dizem que Salazar não tinha pressa, que gostava de acompanhar com paciência os compassos do relógio. Que, capaz de suportar contrariedades, entre as suas biopsias e as falhas do mundo, sabia bem de onde vinha e para onde ia. Era Salazar um arrivista, como por vezes acontece com certos novos ricos, ambiciosos e sem escrúpulos? A tese não era partilhada por Cerqueira. Em quase todas as suas brilhantes orações, a maior parte delas ao serviço da Mocidade, o nosso diretor começava invariavelmente os seus discursos por definir, com eloquência, a obrigação imposta a qualquer nacionalista. Arrivistas ou não, andávamos a seguir Salazar, então ainda um tímido aprendiz de ditador. Uma sentença repetitiva: Bem obedecer para bem servir. Com um fio de permeio: à tempestade republicana, controlada em 1926, seguira-se a calmaria de 1933. Leia-se o nosso diretor, embevecido num dos seus comícios, outra vez à volta da pátria ressuscitada: Corrompeu-se uma geração, oprimiu-se um povo, algemou-se uma nação, aproveitando os acidentes do contingente histórico; mas o sentimento de autonomia ficou arreigado ao vilipendiado por estranhos, para fecundar de novo e surgir à luz dum radioso dia, triunfante e incontestável de dedicação incorruptível. Salazar ao espelho, restaurando a consciência nacional com as virtudes excelsas dos varões de 1640.
O nosso diretor não podia perder a aberta. Em tempo de centenários, não podia mudar de comboio e ficar a olhar para o umbigo. Encontramo-lo em Aveiro no dia primeiro de dezembro de 1939, a decorar o discurso dezenas de vezes, esperando que toda a gente o recebesse com maneiras e finura. Com a Europa debaixo de fogo, o que será, será, a pátria era para Cerqueira a prioridade, com o sol na eira e a chuva no nabal. Por um momento, Cerqueira parece contente, a tentar persuadir os mais novos, a levar os filiados da Mocidade Portuguesa em São João da Madeira até à capital do distrito, para tomarem parte na parada organizada em honra dos quarenta heróis de 1640. O nosso homem tinha andado por vários sítios até se entregar, radiante, com luz própria, à sua ração de dador dos valores da pátria. Não lhe passava pela cabeça fugir com o rabo à seringa. Em Aveiro, o diretor do nosso colégio foi escolhido oficialmente para exaltar, com continência, o patriotismo lusíada junto ao monumento aos mortos da grande guerra. Com tristeza o dizia, nem sempre a história pátria era para santificar. Há na vida das Nações – ouviram-no dizer em Aveiro, a propósito de um passado muito recente - momentos angustiosos em que o seu equilíbrio social se altera pela dissolução dos seus próprios elementos constitutivos, as causas dolorosas em que se desagrega a coesão moral que fortalece as energias generativas do sentimento autonómico da nacionalidade, degradando o espírito da independência.
Pobre pátria a nossa, a do período anterior a 1926. Como o mundo iria mudar numa década. Fixemo-nos no primeiro de dezembro de 1939, em Aveiro, antes de evidenciarmos os dotes intelectuais e de oratória do nosso diretor. Juntemo-nos a Cerqueira e aos jovens da nossa terra que o acompanharam a Aveiro. Às nove horas e quarenta e cinco minutos ficamos em formatura para o içar da bandeira nacional. Às dez horas, assistimos à missa campal, na Avenida das Tílias, no parque do infante D. Pedro, por alma dos heróis da independência. Hora e meia depois, numa atitude impecável, desfilamos com a banda da música desde o estádio municipal até ao monumento dos mortos da guerra, onde depositamos flores naturais. Almoçamos. Às quinze, filiados, instrutores, dirigentes da Mocidade, estávamos todos no Teatro Aveirense, prontos para ouvir o nosso diretor e o seu lamento: E a pátria lusa que assinalara vincadamente o seu lugar ma história da civilização com os feitos portentosos da sua atividade colonizadora, e o heroico Portugal que, de mesquinha leira de terra portucalense, se tornara um dos maiores impérios do mundo, soçobraram momentaneamente ao peso dessa fatalidade duma contingência histórica. Em 1939, vivíamos tempos novos. A narrativa voltava a ser outra vez mais bonita com este milagre do amor da Pátria e da voz do sangue, esse sentimento de família e esse afeto da raça que fecundam a mística do patriotismo. A melhor história era, Cerqueira dixit, a desse amor à pátria à maneira romana: um amor elevado ao cúmulo da piedade cristã, às formas superiores da caridade que Cristo exaltara. Bastava-lhe rematar: E é assim que a vida tão breve do homem se pode associar às coisas eternas da Pátria e de Deus, na imortalidade da glória. No regresso a casa, os nossos filiados na Mocidade, futuros cidadãos com responsabilidade e mando, traziam a alma cheia de emoções.

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