
As minhas deambulações pelos lados da estação de Caminhos de Ferro de S. João da Madeira têm normalmente dois destinos: umas vezes, vou ao Grémio abastecer-me de sementes; outras vezes, vou um pouco mais abaixo, comprar o jornal ao Quiosque das Piscinas e dar dois dedos de conversa com o senhor António Eduardo, a D. Fátima e amigos que ali se abastecem de notícias e de café. Num desses percursos, reparei numa pequena horta junto à passagem de nível, aproveitando uma nesga de terra, entre a linha e a rua.
A horta está bonita, tem alfaces, repolhos, cebola… com diferentes tons de verde, a contrastar com o castanho mecânico da ferrovia. A minha curiosidade não resistiu. Dirigi-me à guarda da passagem de nível, para saber um pouco mais. Descobri que não era apenas uma horta: são duas hortas! A D. Rosa e a D. Miquelina, que fazem turnos para evitar que os nossos automóveis sejam esborrachados pelo Vouguinha, dividiram entre elas aquela faixa de terra e começaram a cultivá-la.
Aproveitando o passadiço de cimento, caminhei, depois, até ao edifício da estação fechada. Os meus olhos ergueram-se para um pequeno quadrado de azulejos incrustado na empena poente, onde pode ler-se: “Concurso das estações floridas, 1º Prémio 1961 - SNI”.

Quem viajava muito de comboio há umas décadas, talvez se lembre desses azulejos, que apareciam nalgumas estações de caminho de ferro. A ideia surgiu no tempo do Estado Novo, promovida pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), dirigido por António Ferro, o grande propagandista do regime salazarista. Foram lançados concursos da mais diversa ordem. Entre eles estava o “Concurso das Estações Floridas”. O objetivo era sempre o mesmo: dar uma boa imagem do país a quem nos visitava. Se na altura vivêssemos em democracia, alguém teria dito que o grande objetivo dos concursos era o de ocultar ou disfarçar o estado de subdesenvolvimento e de pobreza em que o país vivia. Mas ainda faltavam muitos anos para que essas coisas pudessem ser ditas abertamente…
E também é verdade que, para encontrar estações floridas, não precisamos de nos socorrer da imaginação de António Ferro. Já Eça de Queirós, que nunca poderia ter sido salazarista, nos encantara com a cena da chegada de Jacinto à Estação de Tormes, vindo de Paris. Encontrou ele “uma estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes — e outras rosas em moitas, num jardim…”
Hoje, a estação de S. João da Madeira ainda exibe orgulhosamente o título de Estação Florida, que nada tem de desprestigiante, pelo contrário. Mas a D. Rosa e a D. Miquelina enveredaram por outro caminho: transformaram a estação florida numa “estação cultivada”. Com couves e alfaces bem portuguesas, claro!
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