Opinião

fotografias com HISTÓRIA com fotografias - O antigo lugar das Vendas – V

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No final do século XIX, o crescimento populacional de S. João da Madeira faz-se ao ritmo do seu notável processo de industrialização. Os comerciantes, atentos ao desenvolvimento da povoação, disputam os espaços mais apetecíveis que a praça do lugar das Vendas lhes possibilita. Afinal, é por ali que tudo passa e é ali que tudo se passa.
José Inácio Ferreira não precisou de lutar por nenhum. Natural de Romariz, onde nasceu a 23 de janeiro de 1861, veio para S. João da Madeira e foi aqui casou com Emília de Jesus, filha de António Gomes Moreira, um relojoeiro que desenvolvia a sua atividade no rés-do-chão da casa onde vivia com a família, entalada entre a loja do Serôdio e o alpendrado do ferreiro Ti Quartel-Mestre. Começou por ajudar o sogro e acabou por ser ele a dar novo impulso ao negócio, introduzindo a venda e reparação de máquinas de costura e de bicicletas. Depois veio a fotografia que “a esse tempo era novidade empolgante”. José Inácio adquiriu o material necessário e recebeu as instruções básicas para o seu manuseamento. Foi o primeiro fotógrafo de S. João da Madeira.

Começou por realizar trabalhos de fotocerâmica para lápides. Depois, para satisfazer os pedidos de uma clientela mais diversificada, improvisou um estúdio no primeiro andar da casa. Quando o momento exigia, saía para realizar trabalhos de exterior. As fotos de S. João da Madeira do final do século XIX e princípio do século XX que chegaram até nós são, quase todas, de sua autoria.
Apesar de se ter tornado “figura típica da terreola”, pouco se saberia de José Inácio Ferreira se não fossem as referências a ele feitas pelo escritor João da Silva Correia, bem como às suas quatro filhas (Laurinda, Petronila, Ernestina e Júlia) que, pela sua beleza, tanto impressionavam o jovem João Correia.
No livro “Os Outros”, publicado em 1956, o romancista protege a verdadeira identidade de José Inácio, atribuindo-lhe o nome fictício de Tomé Janardo. A magistral descrição do fotógrafo, chamado para registar o momento histórico, é aqui materializada pelo traço da ilustradora sanjoanense Sofia Neto, que muito agradecemos.

E eis que neste comenos acode o Tomé Janardo, o fotógrafo, muito açodado, a armar a tripeça da objectiva.
Era uma enorme câmara fotográfica de arcaico estilo, assente sobre cavalete de nogueira polida, que ele plantou a meia dúzia de passos do combóio. Vasto pano preto, a fraldejar ao sabor da viração, cobria a bisarma de maneira misteriosa. Assestado o aparelho à balastreira, tratou Janardo de focar as lentes. Para tanto, postou-se posteriormente a câmara, e, tirando o chapéu, enfiou a cabeça por sob o pano preto. Embasbacado, em frente, o povoléu aguardava.
A objectiva fixava-se no extremo de tubo metálico que exorbitava do bojo da câmara, para diante, talvez por mais de um decímetro. Daqui pendia o disparador por mangueira de borracha vermelha, terminando em maçaneta, para injecção do ar comprimido que operava o manejo.
Na concentrada circunspecção de quem realiza o acto mais importante deste mundo, Janardo, em grave azáfama, fazia girar torniquetes, fincava e desfincava no terreno os suportes da tripeça, ao mesmo tempo que, a espaços mais curtos, enfiava e tornava a enfiar a cabeça por debaixo do pano preto, a ver se já estava na marca o olho mágico.
O fotógrafo tinha um rosto flácido de linhas breves, magro, nariz de cera muito delgado, olhos quase pisqueiros, e um bigode ruivo com pretensões a farto, que parecia de sentinela aos lábios, não fosse aflorar sorriso sem licença de Deus. Em verdade, nas faces incolores uma sisudez estudada pairava, como se a pessoa, grávida de superiores congeminações, nem oportunidade tivesse para render a si próprio a graça de donairoso semblante. O casaco debruado a gorgorão descaía-lhe às bandas, num desaprumo bastante postiço de artista consumado; e as calças, muito fartas, acaçapavam deploravelmente sobre as botas de elástico à feição da época. Pernas acima formavam-se então protuberâncias inverosímeis de grandes joelheiras, tão exuberante era o tecido, por esbanjamento de um alfaiate muito pródigo.
Em dado momento, como pintaínho que abandona o abrigo materno, Tomé Janardo, desquitando-se da fralda de pano preto, deu passos graves para a balastreira, dizendo ao maquinista:
- Ó Assis Se não lhe custasse, recuava o combóio um tudo-nada. Aí dois metros. Dá melhor perspectiva…
Logo obedecido, o homem redobrou nas diligências. Por fim, foi a uma pasta de couro ali à mão, e dela sacou rectângulo de madeira envernizada que encerrava a grande chapa fotográfica, em vidro. Com mil quindins, pano preto de riba, pano preto de baixo (não fosse entrar resquício de luz e perverter o brometo da chapa virgem), foi rápido em introduzir o caixilho no entalhe respectivo. Afagando mais do que nunca toda a câmara com o pano preto, tratou de retirar a tampa que fechava hermèticamente a chapa.
Ficava o aparelho, definitivamente, em ordem de acção. Foi quando, perna atrás, perna à frente, veio postar-se o artista à ilharga da sua câmara. Já empunhava com decisão a maçaneta do disparador, pronto a romper fogo no momento preciso.
Enfiada a mão esquerda na algibeira do casaco - o bigode ruivo em contracena com os olhos pisqueiros; o nariz de cera em contracena com a austeridade de cartaz - Tomé Janardo pôs-se a mirar tudo com olho de mestre, não fosse estragarem-lhe o conjunto por gesto ou atitude à desafeição. E avisava por entre dentes,solenemente importante:
- Meus senhores! Atenção!... Muita atenção!...
Entretanto, advertia o maquinista, com inesperada familiaridade:
- Ó Assis! Por favor... Levante essa cabeça! A hora é de alegria!
Sem retrucar, o ferroviário desfraldou o semblante.
O fotógrafo então decidiu-se:
- Meus senhores… muita atenção! Um!… Dois!... Três!...
Este três!... foi simultâneo com o disparar da objectiva. Já tudo se desquitava da opressão,
quando Tomé acudiu de mão espalmada, em atitude quase aflitiva:
- Por favor! Ninguém se mexa! Vamos bater outra chapa. É mais seguro. Não vá haver qualquer desarranjo com a primeira... e perder-se esta grande oportunidade histórica.
Gastou largos minutos a fazer a substituição do suporte com a chapa batida, por outro de chapa virgem. No intervalo destas operações, ainda enfiou a cabeça, por mais que uma vez, na fralda do pano preto. Se a coisa não saísse obra-prima, não seria à míngua de pachorra e tempo…
Por fim, espremida mais uma vez a maçaneta de borracha entre os dedos glabros do homem de nariz de cera, pôde Carlos Assis abalar com balastreira para a lufa-lufa da construção, e debandar a chusma dos alvissareiros. In “Os Outros” – João da Silva Correia.

Em 1916, José Inácio Ferreira, por razões que desconhecemos, deixou S. João da Madeira para se fixar com a família na freguesia de S. Nicolau, no Porto. Faleceu em 1919, numa altura em que planeava abrir um estúdio de fotografia, em santa Maria da Feira.

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