
Num tempo em que o conceito de democracia se esvai nos ruídos sórdidos do populismo, nas manobras estéreis do marketing político e no cinismo da governação central, urge recentrar o olhar na sua expressão mais crua e nua: as autárquicas. Longe das abstrações e das promessas cosméticas do poder nacional, o universo autárquico impõe-se como o último baluarte de uma democracia real, vivida, suada, sangrada. A democracia na sua forma mais pura. E mais dura.
As autarquias não são meras extensões do Estado: são a reterritorialização do poder com as pessoas, no terreno, onde os problemas acontecem e onde as soluções não podem esperar por ideologias do metafísico não palpável. É nesta transposição do político para o concreto, do gabinete para a rua, que a democracia reencontra a sua pulsação vital: a da polis grega em carne e osso, feita de rostos, de vozes, de histórias de vida e de decisões partilhadas. Ao contrário da governação nacional, onde os eleitos se protegem por camadas de burocracia e de distância institucional, a autarquia obriga à presença, à escuta e à ação. Aqui, não há onde se esconder. Aqui, tem de ser dar a cara para o que der e vier. Aqui, para ser é preciso estar - e é preciso estar-se desde sempre e com provas dadas.
Ao votar numas autárquicas, o cidadão não escolhe um mero gestor de orçamentos sempre curtos, nem um mero impulsionador de betão e alcatrão. Ele decide quem vai estar ao seu lado quando a sua cidade é abalada por uma pandemia mundial, quando nunca foi ao dentista porque não o consegue pagar, quando a escola dos seus filhos precisa de remover o amianto ou quando o poder nacional lhe quer tirar o hospital da sua terra. É uma decisão crua, real, quase visceral. E, justamente por isso, absolutamente política. Sem filtros nem adornos. A política de rua, do bairro, da freguesia e do município é a única que ainda toca, todos os dias, a vida concreta de cada cidadão e que tem a força de a mudar instantaneamente.
A democracia autárquica tem ainda um poder que os grandes palcos têm perdido: ela expõe in loco, a cada minuto. Aqui, a representação é posta à prova. O mandato é observado ao dia. O compromisso é confrontado na rua, no café, no mercado, no jornal local. Não há escapatória. Quem promete e falha, responde. Quem se ausenta, é notado. A ideologia, se desancorada da realidade, morre à primeira esquina. Porque aqui manda a urgência, a solução, o fazer acontecer. E para fazer, é preciso estar. E para estar, é preciso assumir: o erro, a solução, a mudança, a visão e a responsabilidade. E quem o assume é lembrado, reconhecido, agradecido e reeleito.
Aos partidos e candidatos, fica o aviso claro: não tomem os municípios e as juntas por trampolins estratégicos para voos pessoais mais altos ou como um reduto de clientelas e de favores a amigos. A paciência do eleitorado local está esgotada para estratégias de carreirismo e favoritismo. Além do mais, basta de promessas vazias e de discursos reciclados, cheios de clichês, que já não levantam ninguém da sua cadeira e que insultam a inteligência das pessoas. Apresentem ideias novas, claras, comprometidas. Digam o que querem fazer, porque é que o querem fazer e como o vão fazer. E, sobretudo, estejam preparados para responder por isso. Não queremos políticos: queremos estadistas.
Se não estão prontos para ouvir, para errar e corrigir, para agir sem desculpas e para liderar sem disfarces, então não se candidatem. Esta democracia não tem espaço para figurantes. Esta é uma democracia sem maquilhagem, sem palco e sem teleponto. É uma democracia de mangas arregaçadas com as mãos na massa, ao lado, à frente e atrás das pessoas.
Assim sendo, não será exagero dizer que nas urnas locais arde a última chama autêntica da soberania popular. Se quisermos salvar a democracia do seu declínio formal, o caminho começa aqui: no voto local, na Junta de Freguesia e na Câmara Municipal.
Porque a política, a verdadeira, começa onde termina o asfalto e começa a rua. É aí, e só aí, que se decide o destino do povo. E, com ele, o destino da democracia. A rua é o primeiro e o último parlamento: zelemos por ela.

