Cultura e Lazer

O Kosovo como país inacabado, em livro do sanjoanense Amílcar Correia

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Um país num limbo – o Kosovo –, que pouco avançou desde a guerra e independência, com uma situação indefinida e que precisa de normalizar as relações diplomáticas com a Sérvia, para ter paz. É assim que o jornalista e sanjoanense Amílcar Correia descreve o Kosovo, no livro da sua autoria “Jugoslávia ao Kosovo – A Mais Breve História de um Conflito”. Nesta viagem de regresso ao passado, o autor junta momentos pessoais que viveu naquele país como repórter com textos jornalísticos, História e análise, para questionar o presente e o futuro dos Balcãs, uma região da maior importância nos jogos de influência entre Bruxelas e Moscovo. Entre alertas de que, vinte e cinco anos depois, o conflito étnico mantém-se no Kosovo e de que há o risco de surgirem novas Geórgias, Amílcar Correia critica uma União Europeia dividida e frouxa e uma comunidade internacional sem coluna vertebral. O autor promete, ainda, apresentar o livro, em breve, em São João da Madeira.

Jornal 'O Regional' – Quando regressou ao Kosovo, 25 anos depois da guerra, qual foi o sentimento que o surpreendeu mais: o peso do passado ou a sombra do presente?
Amílcar Correia – O peso e a sombra existem em simultâneo. Vamos ao peso do passado, primeiro. Depois da guerra de 1998-1999, durante a qual o Kosovo deixou de ser uma província da Sérvia, parte integrante do que ainda restava da Jugoslávia de então, os albano-kosovares passaram a gozar de uma autonomia da qual nunca tinham usufruído antes. Nesses anos, que culminaram com a declaração de independência, em 2008, o Kosovo criou novas instituições, “albanizou” a sociedade e celebrou a vitória. É importante ter em conta que o ensino da língua albanesa, em alguns momentos da sua história de integração na Sérvia, foi proibido. Surgiram por todo o lado deste pequeno país estátuas dedicadas aos principais operacionais do Exército de Libertação do Kosovo, que naqueles anos combateu contra o exército federal jugoslavo. Essas estátuas e bustos podem ser vistos na berma de uma estrada ou na praça de uma cidade. Geralmente, são homens fardados e com uma arma em punho. Adem Jasahri, o principal mártir daquele exército, é nome de aeroporto, do principal polo cultural de Pristina, a sua estatueta é omnipresente nas prateleiras das poucas lojas de souvenirs. A homenagem que lhe é feita deve-se ao facto de ter sido um dos fundadores da luta armada e de ter sido morto, juntamente com dezenas de familiares, pelo exército jugoslavo. A sua eternização é o prolongamento da memória da guerra. E esta colide com a indefinição atual do país, cuja independência não é reconhecida por cinco países da União Europeia e que não tem assento na ONU por veto russo e chinês. O presente é uma indefinição.

Qual foi a descoberta mais inesperada na sua viagem ao Kosovo em 2024? Alguma experiência que tenha mudado a sua visão sobre a região ou sobre o jornalismo?
Eu escrevi este livro porque quis regressar ao passado, para questionar o presente e refletir sobre o futuro da relação entre a Sérvia e o Kosovo, mas também da região que classificamos como Balcãs Ocidentais. O regresso foi um confronto comigo mesmo e com as minhas memórias. O que encontrei foi uma tensão crónica. A minoria sérvia-kosovar, de cerca de 5%, está concentrada nos enclaves a Norte, mais próximos da Sérvia e não existem cidades multiétnicas. Numa cidade como Prizren, no Sul, os mosteiros ortodoxos estão vazios, por falta de população sérvia, que foi expulsa desta zona do país. Vinte e cinco anos depois, o conflito étnico mantém-se, assim como a impossibilidade de a maioria albanesa e a minoria sérvia viverem cordialmente juntas.

Um possível novo conflito

Quer partilhar um momento que, apesar do tempo e da distância, o fez sentir que a guerra nunca saiu verdadeiramente daquele território?
A guerra entre albaneses e sérvios terminou em 1999, depois dos bombardeamentos da NATO à Sérvia. Há, por vezes, picos de tensão entre as duas comunidades que culminam em incêndios ateados a igrejas ortodoxas ou a mesquitas, vinganças e expulsões. Mas o que revela que um novo conflito pode surgir de novo é a divisão da cidade de Mitrovica. Esta cidade é dividida por um rio. A Norte, moram sérvios-kosovares, fala-se sérvio, etc. A Sul, habitam albaneses. São duas cidades diferentes e opostas. Há quem não atravesse a ponte entre as duas margens. Tropas da NATO mantêm-se na ponte sobre o Ibar desde 1999 para evitar novos conflitos.

O Kosovo continua a ser uma encruzilhada entre identidades e interesses geopolíticos. Qual é o maior desafio para quem quer compreender o conflito e para quem deseja construir a paz?
O futuro depende do presente. O Kosovo precisa de normalizar relações diplomáticas com a Sérvia, que nunca reconheceu a independência da sua antiga província. Enquanto isso não acontecer, a Sérvia não avançará no seu processo de adesão à União Europeia e o Kosovo não obterá o estatuto de país candidato. Só isso permitirá ao Kosovo a legitimidade consensual que os kosovares procuram e ainda não obtiveram. Bruxelas não tem conseguido mediar o conflito latente. Moscovo e Pequim vivem com isso. Bruxelas tem de decidir se quer ou não o alargamento e até irá por esse objetivo. Claro que o contexto mundial não é favorável a esta União Europeia dividida e frouxa.

Amílcar CorreiaNuma Europa que quer ser pacífica, como é possível ainda existir uma “bomba-relógio” tão perto? O que falta para que essa ameaça seja desativada?
Falta uma Europa com poder e interesse em mediar. Mas o que temos visto, depois da eleição de Donald Trump, é uma Europa mais irrelevante do ponto de vista diplomático. Washington quer transferir Kiev para a responsabilidade europeia e não vai querer saber dos Balcãs para nada. Ainda por cima, nesta lógica novecentista da política internacional, os Balcãs seriam uma zona de esfera de influência russa. Mas a principal “bomba-relógio”, para utilizar a sua expressão, nem é o Kosovo. A ameaça de secessão da Bósnia-Herzegovina é mais presente. A Bósnia está dividida em duas entidades: a federação croato-muçulmana e a república Sprska (sérvia). O presidente desta última, Milorad Dodik, visita frequente de Vladimir Putin, faz sempre a apologia da união com a Sérvia, do outro lado do rio. É o antigo desejo da Grande Sérvia. A minoria sérvia da Bósnia representa cerca de 30% da população...

Como vê a intervenção da Rússia e da União Europeia nesta “zona de atrito”? Acha que os atores internacionais compreendem a complexidade do terreno ou repetem velhos jogos de poder?
A Rússia não abdica de exercer influência nos Balcãs, através dos irmãos eslavos sérvios. Essa influência pode traduzir-se em campanhas de apoio ao presidente sérvio Alexander Vucic ou campanhas de desinformação contra a União Europeia, igualdade de género e afins. A UE refere que a sua geoestratégia inclui o alargamento aos Balcãs Ocidentais, o que inclui Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Albânia, Montenegro e Macedónia do Norte, mas há o risco de estes países começarem a desacreditar na democracia, no estado de direito, etc. Há o risco de surgirem novas Geórgias.

Comunidade internacional sem coluna vertebral

E o que é que não se aprendeu com a guerra do Kosovo que possa ter algum paralelismo com as guerras a que assistimos nos dias de hoje?
Como disse há pouco, quis regressar ao passado, para questionar o presente. Como é que 25 anos depois, continuamos a falar de genocídio, limpeza étnica, impossibilidade de comunidades de ascendência distinta poderem conviver? A NATO bombardeou a então Jugoslávia, porque os líderes ocidentais não poderiam condescender com a limpeza étnica de que estava a ser vítima a população albanesa do Kosovo. Era esse o discurso de Bill Clinton ou Tony Blair. Slobodan Milosevic, o presidente da República Sérvia (na altura, a Jugoslávia era formada pela Sérvia e Montenegro), foi acusado de crimes de guerra e entregue ao Tribunal Penal Internacional. O genocídio em Gaza e a limpeza étnica na Cisjordânia são de uma gravidade muito superior e a comunidade internacional de hoje vive bem com as atrocidades do governo de extrema-direita de Israel. Com Trump na Casa Branca e uma União Europeia sem coluna vertebral, o discurso dos valores e o Direito Internacional são arqueologia.

Algumas das suas histórias foram contadas em conversas, ao longo dos anos, mas agora foram passadas para o papel. O que ganha e o que perde uma história quando sai da oralidade para o livro?
Sim. É verdade. A primeira parte do livro reúne histórias autobiográficas que não escrevi quando lá estive como enviado especial do jornal Público, por se tratar de histórias pessoais, que não se encaixavam no perfil de um jornal generalista. Por outro lado, estava lá para documentar as vidas em convulsão daquelas pessoas e não para falar das minhas peripécias. Com o tempo, fui percebendo que, quando falava dessas três semanas no Kosovo, eram essas as histórias que me tinham marcado mais pessoalmente: os telefonemas que recebia, num apartamento alugado, de um homem que me acusava de ter morto os pais ou as noites que passava em claro a ouvir os passos dos meus senhorios, que não se deitavam com medo de que alguém lhes incendiasse a vivenda onde eu dormia no rés-do-chão.

“Jugoslávia ao Kosovo – A Mais Breve História de um Conflito” descreve os vizinhos a disparar de varanda para varanda, como cães que ladram uns para os outros. Essa metáfora traduz um estado permanente de tensão? Acha que é possível quebrar este ciclo de confrontos?
Admito que essa frase possa induzir essa permanente tensão. Mas esse trecho refere-se à minha experiência num bairro, para o qual me tinha mudado e no qual as pessoas festejavam a vitória, depois da saída das tropas jugoslavas do território, disparando rajadas de tiros para o ar.

Escrever um livro sobre um conflito “congelado” é uma forma de descongelar consciências? Que reação espera do público português?
Os Balcãs não são uma questão do passado. Estrategicamente, trata-se de uma região da maior importância nos jogos de influência entre Bruxelas e Moscovo. Creio, e é apenas uma opinião sem base fundamentada, que há um crescente interesse pelos livros de não-ficção e de política internacional, em particular. Ora, este livro reúne autobiografia, reportagem, história, análise, o que o torna mais ecuménico e transversal.

Enquanto repórter, esteve na linha da frente, entre disparos e o silêncio das aldeias destruídas. Como se conta a brutalidade da guerra sem cair no sensacionalismo?
Só há uma resposta possível: rigor jornalístico, comportamento ético e deontológico e respeito pelas pessoas. Só é sensacionalista quem quer. A ética é a melhor opção.

Se tivesse de falar a um jovem europeu que desconhece o conflito na Jugoslávia, que história essencial gostaria que ele conhecesse?
A história da Jugoslávia é interessante e complexa. Jugoslávia significa a união dos eslavos do Sul e nasceu como monarquia, após a Primeira Guerra Mundial, unindo a Eslovénia, a Croácia e a Sérvia. Depois da Segunda Guerra Mundial, nasce a Jugoslávia comunista do marechal Tito. Este país era uma federação composta por Eslovénia, Croácia, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedónia do Norte. Com a morte de Tito, o Partido Comunista cedeu lugar ao nacionalismo e a uma classe política que preferiu entrar em guerra para defender interessas de grupo. Cada um recusava aos outros o que reclamava para si. Entre 1991 e 1999, a Jugoslávia desmembrou-se ao longo de quatro guerras. Como dizia o Edgar Morin, morreu uma bela ideia de multietnicidade, no momento em que a União Europeia consolidava a sua a cooperação entre estados-membros em Maastricht.

Se tivesse de escolher uma palavra para definir o Kosovo hoje, qual seria? E porquê?
Limbo. O Kosovo não avançou muito desde 1999. Os seus líderes declararam a independência em 2008, já em desespero. Estados Unidos da América e europeus reconheceram a independência com prontidão, mas com a ressalva de que se tratava de um caso muito especial e que este processo não se poderia repetir. Na altura, lembro-me do presidente arménio ter perguntado porque é que o enclave de Nagorno-Karabakh não podia declarar a sua independência e se não havia dois pesos e duas medidas? Havia e há. Veja-se o que acontece na Palestina e na Ucrânia. A palavra limbo remete para essa sensação de país inacabado e incompleto, algo que está no intermédio.

O passado e o presente confundem-se no seu trabalho. Que papel deve ter a memória histórica no futuro político do Kosovo e dos Balcãs?
Os Balcãs têm muitas disputas sangrentas no passado. As guerras de 1912 e 1913, a Primeira Guerra Mundial, que começou em Sarajevo, as disputas entre croatas e sérvios na Segunda Guerra, etc. A memória histórica deve ser substituída pela cidadania. A cidadania e a civilidade são mais importantes do que a ascendência e a tentação do voto étnico ou religioso. Sem cidadania, não há futuro nos Balcãs.

Enquanto jornalista, tem a missão de relatar factos; enquanto escritor, pode refletir. Que tensões sente entre informar e interpretar?
É necessário resistir à tentação de manipular os factos e preferir o rigor profissional. Os factos são factos e devem ser apresentados como tal. A análise ou o texto de opinião é interpretativa. Informar implica rigor profissional na recolha, tratamento e apresentação dos factos. Interpretar significa argumentar com base em opiniões que assentam em factos recolhidos e comprovados. Num ecossistema de desinformação, a informação com rigor é cada vez mais crucial para perceber o mundo em que vivemos.

Por fim, para quando está prevista a apresentação deste livro na sua cidade, para todos os sanjoanenses?
O mais rapidamente possível.

 

 

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