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“Todas as Missões UN são perigosas”

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Rosa Maria aterrou em Portugal no final do ano passado, depois de uma missão que passou pela República Centro Africana e pelo Mali

Jornal ‘O Regional’ – Três tentativas para concretizar um ideal de vida, uma missão. E à terceira foi de vez?
Rosa Maria Gomes – Sim, a primeira vez que fui nomeada para uma Missão das Nações Unidas (UN), foi para ir para o Chade, em 2010, mas infelizmente a Missão foi cancelada, o governo chadiano não renovou o mandato.
Em 2018, integrei a ‘MINUSCA’, na República Centro Africana, a 10 de março, mas, infelizmente, em junho tive de ser evacuada para Portugal em estado muito crítico, ficando internada por um período superior a três semanas no Hospital Santa Maria, em Lisboa, em virtude de ter contraído malária.
A 10 de novembro de 2019, embarquei para o Mali, integrando assim a Missão MINUSMA, e regressei a Portugal no dia 11 de novembro do ano passado.

Passou, inicialmente, pela República Centro-Africana, onde acabou por contrair malária. Mesmo assim, não desistiu.... Porquê?
Desistir? Claro que não. Integrar uma Missão da UN foi desde sempre um dos meus objetivos profissionais e representar a PSP numa Missão da UN é algo muito dignificante. Estar em Missão é poder levar o nome da minha polícia além-fronteiras.
É a cereja no cimo do bolo. Foi, na verdade, muito importante para mim representar a PSP e Portugal. Ao fim de todos estes anos de profissão, tenho imenso orgulho em me vestir diariamente de azul e poder fazê-lo fora do meu país. É algo que dificilmente posso descrever em tão pouco tempo.

Nessa altura, recebeu a visita do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Esse reconhecimento foi importante?
É verdade, o  Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi-me visitar três vezes ao Hospital Santa Maria, e diariamente telefonava à minha filha, para saber do meu estado de saúde.
No entanto, devo referir que o Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, também me visitou, acompanhado pela minha atual Comandante Distrital, a Superintendente Virgínia Cruz, bem como o atual Diretor Nacional, o senhor Superintendente Chefe Magina da Silva, à data dos factos Diretor Nacional Adjunto para a Área de Operações e Segurança.

Posso, então, concluir que foi importante este reconhecimento dos governantes e dos elementos da PSP…
Sem dúvida que foi muito importante receber a visita de todos eles. Destaco, no entanto, a visita do Presidente da República. Foi muito gratificante sentir-me importante (risos).

Em novembro de 2019, começou a missão em Mali. Que cenário encontrou neste país africano?
O Mali estava em 2019 em fase ascendente da estabilização do sistema económico-político-judicial, após todos os anos de conflitos depois de 2012. No entanto, em agosto deste ano, deu-se um novo golpe de Estado.
Enquanto não for possível a estabilização do país, será muito difícil haver segurança pública.
Há muito trabalho a fazer e é por isso que a UN tem lá a Missão MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali).

“O meu trabalho era de acompanhamento e aconselhamento”

Esta missão de paz foi considerada a mais perigosa do mundo, porquê?
Todas as Missões UN são perigosas. Sempre que há tentativas para a estabilização e a reposição dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, há oposição por parte dos grupos armados. O Mali é um país muito grande e há muitos opositores ao sistema governamental, seja ele qual for.

Quais são os primeiros choques que se sentem quando se sai da realidade de um país como Portugal e se chega ao lugar onde não há quase nada, senão o amor pelo próximo?
São vários. Na verdade, amor é o que não falta, principalmente por parte das crianças, a população também é muito afetuosa. Quando se chega ao fim da primeira semana, a reação é: as nossas crianças deveriam passar aqui uns dias. 

O que a leva a tal afirmação?
Porque grande parte das nossas crianças em Portugal são egoístas, só pensam em bens materiais. Lá é tudo diferente. As crianças são felizes com muito pouco. Por vezes basta um simples abraço.

Trabalhou sobretudo com crianças, jovens, mulheres grávidas ou vítimas de violência doméstica. Que tipo de trabalho desenvolveu?
O meu trabalho era essencialmente de acompanhamento e aconselhamento dos casos que iam surgindo diariamente na Brigada onde eu estava destacada. Os UNPOL, polícias das Nações Unidas, não podem intervir diretamente nem tomar decisões, unicamente acompanhamos os dossiers e ajudamos.
Muitas vezes criamos projetos para ajudar os nossos parceiros. O meu foi justificar a falta de meios materiais, neste caso, em concreto, uma viatura para o transporte das crianças, no sentido da Missão poder dar a viatura.

“A pandemia veio retardar todos os nossos objetivos”

O que faz mais falta num país como o Mali?  A comida, a água, os bens de saúde foram as maiores necessidades que encontrou?
Mais do que tudo aquilo que me está a perguntar, o que faz mesmo falta é a estabilidade em Mali, a paz e, como já referi, a segurança.

Qual a importância das mulheres em missão de paz?
A MINUSMA é uma Missão Multidimensional e tem as três componentes. Temos civis, militares e polícias, e em todas elas temos mulheres. Acho que relativamente à importância que fala, as mulheres têm um sentido mais aguçado de ver as coisas, somos mais emocionais, pensamos mais rapidamente e encontramos sempre soluções muito práticas para resolver situações inopinadas.

Como representante da PSP portuguesa, o que pensava antes de dormir após uma jornada numa missão?
Quando ia dormir pensava sempre que tinham sido cumpridos os meus objetivos, mas que ainda poderia fazer mais e talvez melhor ainda, se tivesse mais tempo.

Que desafios a pandemia veio acrescentar à missão MINUSMA?
A pandemia veio retardar todos os nossos objetivos. Estive confinada em casa a trabalhar. Logicamente, que tudo passou a ser muito diferente, nunca é a mesma coisa quando não se tem o contacto pessoal com as vítimas, nem os diálogos são iguais quando não estamos na presença dos nossos parceiros.

A covid-19 assustou-a e fê-la pensar em desistir da missão?
Assustou-me um pouco, mas em momento algum me passou pela cabeça desistir da Missão. Desistir não faz parte do meu vocabulário.

Não conseguiu concretizar um dos seus objetivos, que era oferecer à equipa com quem trabalha um carro...
É verdade. Não foi possível por causa da covid-19, mas tenho quase a certeza de que, quem me substituir, continuará com o meu projeto e levará o barco a bom porto.

“Tenho um carinho muito grande por S. João da Madeira”

Quais as memórias que traz desta missão?
Memórias e saudades das crianças do meu bairro, dos meus meninos, que me chamavam de CR7, sempre que eu passava na rua a caminho do mercado. Dos meus colegas de trabalho da Missão e ainda dos meus parceiros malianos. Memórias dos bons momentos que passei na vivenda onde morava com os meus colegas, chegámos a ser cinco: três portugueses, um espanhol e um francês. Memórias do calor humano, das paisagens, da cor vermelha da terra.

O que é que uma jovem portuguesa que sonhe fazer carreira na Polícia de Segurança Pública poderia ouvir de si após esta experiência?
Em primeiro lugar, se efetivamente quer ser polícia, não deve desistir desse sonho ou vocação, independentemente das dificuldades que terá de ultrapassar para o realizar.
Em segundo lugar, que durante o seu percurso profissional concorra a uma Missão da UN, a experiência é única e ficará para sempre na sua memória o tempo passado.

O trabalho da ONU e de ONG’s é fundamental para países como o Mali, onde mesmo depois de um golpe de Estado, após meses de protestos e agitação social, ficou vulnerável à ameaça de grupos islâmicos?
Precisamente por esses motivos é que existem Missões como esta, após golpes dessa dimensão é fulcral reerguer o país. Toda a ajuda é necessária. 

Onde mora o medo durante a estadia numa missão? E que lições de vida traz no coração?
O medo não pode fazer parte dessa equação.
Relativamente às lições, posso falar-lhe de humildade, partilha de costumes e tradições, as interligações culturais. O repartir de alimentos quando praticamente não tinham nada para eles próprios comerem. 

Está atualmente na divisão Policial de Espinho. Sente-se realizada?
É verdade. Estou atualmente na divisão Policial de Espinho. Não estou à frente de nenhuma Esquadra. Atualmente sou a Adjunta do Comandante da Divisão Policial de Espinho.

Antes de partir em missões internacionais, foi comissária na Esquadra da PSP de S. João da Madeira. Mantém relação com a cidade e com os sanjoanenses?
Sim, tenho um carinho muito grande pelas pessoas de S. João da Madeira. Durante os cinco anos que comandei a Esquadra, logicamente que fiz excelentes amizades, que ainda mantenho e espero manter por muitos anos. 

Caixa: 

Rosa Maria assumiu os destinos da Esquadra da PSP de S. João da Madeira em dezembro de 2013, tendo sido a primeira mulher à frente dos destinos da PSP sanjoanense. Licenciada em Ciências Sociais, natural de Gondomar e residente em Ovar, foi durante alguns anos comandante da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de Espinho. Agente há 33 anos, já exerceu funções em Cascais, Lisboa e Santarém. Como oficial, passou pela Escola Prática de Polícia, em missões internacionais em Moçambique e Cabo Verde. Passou ainda pelo Comando do Porto, onde fez parte do núcleo deontológico e disciplina.
Os principais objetivos da missão da ONU no Mali são prestar à implementação do acordo de paz e a reconciliação no país, apoiar a estabilização e o restabelecimento da autoridade do Estado em todo o território do Mali, proteger os civis, promover e proteger os Direitos Humanos, prestar ajuda humanitária e de cooperação, bem como o aconselhamento das Forças Militares e de Segurança.

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