Flora Pinto Leite nasceu em S. João da Madeira há 102 anos e foi batizada quinze dias depois, no mesmo dia em que os seus pais comemoravam dois anos de casamento. O desejo de ser freira falou mais alto.
Jornal ‘O Regional´- Nasceu em maio de 1920, exatamente no mesmo dia em que os seus Pais comemoravam dois anos de casamento. Quer contar-me esta história?
Flora Pinto Leite - Eu nasci a dois de maio de 1920. Nasci no dia em que os meus pais assinalavam dois anos que tinham casado. Lembro-me de me dizerem que era um domingo e que ainda tinha chegado a tempo da missa da uma da tarde. Eles eram uns bons católicos praticantes. Batizaram-me, passados quinze dias, no dia 16 de maio, em S. João da Madeira.
A Irmã Flora Pinto Leite é oriunda de uma família grande. Teve seis irmãos. Nasceu em S. João da Madeira, numa terra de que diz ter muita honra e ligada a uma família muito religiosa…
O meu pai tinha uma sapataria e ele trabalhava lá, enquanto a minha mãe era uma boa dona de casa e tinha a seu cargo, para além dos afazeres domésticos, prestar os cuidados aos sete filhos. A família era grande. Eu fui a mais velha, a primeira a nascer. Neste momento, ainda tenho, felizmente, vivo, o meu irmão mais novo, o “Finzinho”, que, na verdade, é Serafim, nome do meu querido e estimado tio Serafim Leite. Eu sempre gostei de S. João da Madeira. Uma cidade como diz, e muito bem, a que me honro pertencer, e sempre foi conhecida pela cidade do trabalho. Recordo-me de grandes empresas e de milhares de trabalhadores. Eram os sapatos e os chapéus a grande referência.
Mas como era afinal S. João da Madeira nessa altura?
Era uma vila mais ou menos rural e agrária que pertencia a Oliveira de Azeméis. Anos mais tarde, emancipou-se, e transformou-.se aos poucos num Centro Industrial, com muitas indústrias. A minha cabeça já não é o que era (risos) para me lembrar de tudo, mas sei que vinha muita gente de fora para lá trabalhar.
Descreva-me a paróquia nessa altura?
Era uma paróquia única, de um único concelho e de uma só freguesia, que ainda hoje é caso excecional em Portugal. Os sanjoanenses sempre foram muito ligados à igreja. Eu fiz a minha comunhão solene com cerca de 10 anos e já nessa altura integrava um grupo muito grande de jovens.
Estudou no colégio Castilho, em S. João da Madeira. Dois anos mais tarde veio para o Colégio do Sardão… Que menina era esta?
É verdade. Estudei no colégio Castilho, em S. João da Madeira, até ao 5.º ano que hoje acho que corresponde ao 9.º ano. Tenho a ideia da escola ser mesmo ao lado da minha casa. Era uma catraia que gostava mesmo muito de brincar, mas sempre fui muito responsável com os estudos. Dois anos mais tarde fui para o Colégio do Sardão e, foi ali que, num retiro orientado pelo Padre Moreira, senti a grande vontade de ser doroteia.
Tinha que idade nessa altura?
Eu tinha 19 anos, e era necessário autorização para sair de casa. Teria de esperar até aos 21, pois era a idade maior. Fugi de casa. Sentia que aquela era a minha vocação. Não foi fácil…
“Já freira, fui professora”
Como reagiu a sua família a esta sua decisão?
Apesar dos meus pais serem católicos, a notícia não foi bem aceite, não permitiam esta minha decisão. Tive de fugir de casa para ser freira. Foi um período complicado. E saí e segui o meu destino. Eles não queriam que eu fosse freira, nem por nada, embora até existissem outras pessoas ligadas à religião na nossa família. Do Sardão passei para Coimbra, onde, com outras irmãs, nos preparamos para o chamado Exame de Aptidão, que, na altura, daria acesso à Universidade, na Faculdade de Letras, para entrarmos em Filosofia Românica.
Mas, estudou Ciências Biológicas?
Pois estudei. Pouco tempo depois de decidirem que íamos para letras, as responsáveis lá pensaram que seria mais proveitoso para os colégios, irem duas para letras e outras duas para ciências (risos).Não tínhamos alternativa. Era aquilo que elas decidiam que tinha que ser feito. Tinha 21 anos. Lembro-me que uma das minhas grandes vontades era estudar e ser professora, Letras. Era uma paixão. Contudo, terminei o curso de Ciências Biológicas, por indicação dos superiores. Foi, sem dúvida, uma opção acertada. O curso realizou-me. Sempre fui boa aluna. E segundo reza a história, até fui boa professora. (risos). Eu sempre gostei de lecionar. Já freira, fui professora aqui no colégio do Sardão, onde precisaram de mim para lecionar, neste colégio interno, e fui muito feliz.
Voltando à sua família. Chegaram a aceitar esta sua escolha?
Foi sempre muito difícil. Os meus pais sempre se opuseram à minha vocação. Deixei Coimbra e fui para Noviciado, em Vila do Conde, sem nada lhes dizer. Quando souberam ficaram muito zangados comigo. A minha mãe até alegou estar doente. Lá vou eu, e quando chego verifico que não estava nada doente, mas apenas muito zangada. (marota a minha mãe). Acho que fiquei lá uns longos dias sempre com muita tensão entre os três. Antigamente era muito normal as mães fazerem isto a todas as meninas que queriam viver no convento. A minha mãe não foi exceção, fingiu que estava doente para eu ficar em casa. E eu acreditei e acudi.
E qual era a reação dos seus irmãos?
Os meus seis irmãos sofriam naturalmente com aquele ambiente, principalmente os mais pequenos, por me verem chorar, muitas vezes. Mas acabaram por ser cúmplices dos meus pais. Naquele período, eu escrevia cartas para a Madre Mestra e pedia aos meus irmãos que as colocassem no correio. Como eles sabiam que os meus pais não estavam de acordo com a minha ida para a vida religiosa, essas cartas eram desviadas e entregues aos meus pais, o que fez com que eu perdesse o contacto com as irmãs…Descobri a razão pela qual as cartas nunca chegaram à mestra (já bem mais tarde). E fui perdendo o contacto porque nunca me respondiam.
Mas, segundo sei, as suas malas chegaram a casa a determinada altura…
Tenho uma vaga ideia disso, agora que fala do assunto. Acho que foi por causa de uma carta que o meu pai escreveu para o Noviciado de Vila do Conde.
Seguiu em frente com a sua missão. De que forma?
Acho que, uma vez pedi autorização para ir ao Noviciado ver as irmãs, e eles autorizaram, apesar de contrariados. Não levei nada de malas ou roupas, pois sempre pensei que não ia mesmo para ficar. Contei o que estava a passar à Mestra do Colégio que me disse para ficar. Telefonei aos meus pai a comunicar a decisão. Entrei no Noviciado, não me lembro bem da data. Quando fiz a vestição, a minha mãe e acho que o meu irmão mais novo vieram à festa. A Madre Mestra chamava-me de “Sor Leite”, em memória dos meus dois tios Jesuítas – Serafim Leite. Fiz todo o Postulado e também a vestição, aqui neste colégio onde me está a entrevistar (Sardão)
E como lidaram, ao longo dos anos, com esta sua vida dedicada à igreja?
Depois lá se foram mentalizando. Afinal, eu estava a fazer a minha vida e a ser feliz com a minha escolha, e eles acabaram por perceber isso. O meu pai foi sempre mais resistente. Esteve muitos anos em silêncio. Foi um dia ver-me em Coimbra, depois do Noviciado. Sempre lhe escrevi no Natal, aniversário e na Páscoa.
A irmã andou por várias Comunidades?
Muitas, muitas com as alunas, sempre no ensino. Eu dizia em miúda que queria ser professora. Estive vários anos no colégio de Cernache.
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