Há profissões que perduram no tempo, e que ainda mantêm clientes há mais de 50 anos, em S. João da Madeira.
Resistir ao tempo. À pandemia. A muitos contratempos. Imprevistos. Esse é o desafio diário de muitos sanjoanenses que, sobrevivem diariamente, dedicando-se a profissões quase em extinção.
Feirante, sapateiro, relojoeiro, barbeiro, vendedores de mercado municipal e costureiras. Estas são algumas das profissões que resistem ao tempo e aos avanços da tecnologia. São trabalhos feitos, na sua maioria, à mão, com muita dedicação, mantendo sempre o lado tradicional.
Uma profissão que perdura é a de relojoeiro. A ligação de Abel Rodrigues à relojoaria começou quando ainda era menor de idade, com “10 anos”. “O meu pai tinha esta profissão e eu, quando vinha da escola, ajudava-o a desmontar despertadores para começar a aprender e depois a montar os mesmos”, explica.
Abel ainda trabalha por amor à arte, que considera “pouco valorizada” e diz que a “não está ao alcance de qualquer pessoa, pois é uma profissão que exige muita perícia, paciência e concentração”.
No arranque de mais um ano, Abel Rodrigues confessa que a profissão que escolheu há mais de 50 anos está cada vez mais a “perder valores”, e que, das cerca de nove relojoarias que existem em S. João da Madeira, só “três é que dispõem de relojoeiros”. Explicou também a ‘O Regional’ que tudo isto se deve “porque começaram a entrar no mercado os relógios eletrónicos, a pilhas. Nessa altura, os relógios manuais ou mecânicos começaram a cair em desuso, e basta olhar para as montras das ourivesarias”.
Este relojoeiro sanjoanense assegura que a população se tem habituado a estas alterações tecnológicas, o que afeta muito o seu trabalho na ourivesaria onde trabalha. “Hoje já não se desmonta um relógio para ver qual é a anomalia. Tiramos a pilha ou mudamos o circuito”.
Aos 66 anos de idade, assume que nunca se imaginou a fazer outra coisa. “Não tenho qualquer curso desta arte e até já estou treinado para a tecnologia mais recente nesta profissão”, diz.
Na sua mesa de trabalho é possível observar vários materiais, tais como pinças, alicate de pontas, chave de fendas, lupa, pinça de garras, suportes para levantar e uma cravadeira que serve para retirar peças que se partem e necessitam de ser substituídas, alguns dos utensílios necessários para a sua profissão.
Sapateiro, uma profissão que resiste “à crise”
Francisco Macieira é dos poucos sapateiros em S. João da Madeira que conserta, constrói de raiz um sapato e realiza trabalhos vários na área do calçado. “É uma profissão antiga que, ainda assim, vai resistindo à crise e ao tempo. Hoje, os nossos jovens não querem profissões que sujem as mãos. Ser sapateiro é uma arte como outra qualquer que deve ter seguidores”.
A sua loja, na Rua Oliveira Júnior, em S. João da Madeira, está repleta de sapatos, a maioria para consertar, lembrando quem ali entra uma mistura entre uma sala de costura e uma oficina.
O cheiro a graxa é sentido logo que se entra. Sapateiro profissional há 32 anos, diz mesmo gostar muito daquilo que faz. ”Coloco capas, solas, fechos, elásticos, palmilhas e faço ainda muitos outros trabalhos”. E clientes parecem não lhe faltar. “Vêm de todo o país, pois fazemos aqui determinadas transformações no calçado que as empresas não conseguem”, nomeadamente calçado adaptado para determinadas patologias.
As máquinas na sua loja “são à moda antiga”, as mesmas que o têm acompanhado nesta sua profissão. Uma máquina cortante para realizar furos em cintos e cortar materiais rijos, uma máquina de braço para dar pontos e coser fechos e uma lixadeira, talvez a máquina mais importante de todas, para aparar as solas e outros tipos de materiais, explicou-nos.
Francisco Macieira diz que o sapato sempre foi um objeto de moda, mas também de necessidade. “Existem sempre aquelas pessoas que querem conservar e não comprar uns novos, pois sentem-se bem com eles”, conta a ´O Regional´.
Uma vida no corte e costura
Uma profissão que ainda resiste no tempo é a de costureira. O dom da costura, para Luísa Costa, foi descoberto na sua infância, uma vez que a mãe trabalhava nos Estados Unidos em alta costura. “Ela trazia para casa sobras de vários tecidos” e, desses retalhos, começaram a nascer as suas primeiras ideias para a costura. “Sempre fui fascinada por palcos, espetáculos, todo aquele glamour vivido no meio artístico”. “Toda a beleza” das roupas que via despertaram sempre em si a atenção, com a certeza de um dia ainda vir a ser a costureira de pessoas que pudessem vestir aquelas roupas.
Apesar de ter a paixão do ‘corta e cose’, e de desenhar as suas roupas desde muito cedo, só há 15 anos abriu o seu ateliê em S. João da Madeira. “Comecei por fazer traduções numa empresa, dei aulas de inglês comercial, mas sempre com a costura por perto”, até que um dia decidiu fazer aquilo que mais gostava.
Luísa faz vestidos, saias, casacos, calças, vestidos de noiva e todo o tipo de arranjos. E trabalha com todo o tipo de tecidos, desde seda, couro, malhas, lãs, cetins e fibras. “Tive que investir em equipamento. Tenho que conseguir dar resposta aos pedidos dos meus clientes”, que considera como “família”, pois, ainda hoje, mantém clientes desde o primeiro dia que abriu a sua loja em S. João da Madeira.
Como qualquer profissional que trabalha na área da moda, também Luísa Costa acompanha as últimas tendências. “Gosto de dar a minha opinião aos clientes que, muitas vezes, chegam cá com uma roupa antiga para ser atualizada. Não podemos parar no tempo, e em nenhuma profissão”. Lamenta, no entanto, que a profissão de costureira e modista esteja em vias de extinção na cidade, o que “não acontece, por exemplo, no Porto”. Porém, não se pode queixar de falta de clientes. “Com a chegada do sol, o trabalho aumenta. As pessoas saem mais, querem roupas diferentes”. Confessa que a pandemia também a afetou. “Sinto falta de ter vários clientes no interior da loja, dos alunos das escolas”, pois, agora, só é permitida a presença de uma pessoa no interior do seu espaço.
Ao longo do seu percurso, já venceu vários prémios, destacando um, em 2013, onde participou com profissionais de vários países. Vestiu várias noivas, fez vários vestidos para os bailes de finalistas, vestiu o elenco do “Despertar da Primavera”, na Casa da Criatividade, com “valores a baixo custo”, porque a vida “não está fácil para ninguém”, e orgulha-se de ter cumprido sempre os prazos para entrega dos seus trabalhos.
“Sou o barbeiro que sempre fui”
Aos 77 anos, Celestino Soares é dos últimos antigos barbeiros de S. João da Madeira com diploma. Chegou à cidade em 1965, depois de cumprir o serviço militar. Nessa altura, confessa que não existia concorrência. “Cada um tinha o seu estilo e as diferenças respeitavam-se”, diz. As portas da sua barbearia, situada na Rua D. Afonso Henriques, abriram-se há mais de 50 anos. “Apesar da minha idade, estou no ativo continuamente. Sou do tempo em que se trabalhava continuamente. Hoje já não é assim. Vai-se fazendo alguma coisa. Mudou tudo. Não existem comparações possíveis. Tenho muitas saudades daquele tempo”. Com o passar dos anos, foi acompanhando, ao seu “jeito”, a evolução da profissão, mas assume, convicto, que é “o barbeiro que sempre foi”. “Faço de tudo nesta arte”, acrescenta. Alguns dos seus clientes são os mesmos de há 50 anos. “Vieram os pais, filhos e os netos”. A juntar a tudo isto, tratou do cabelo de várias personalidades na cidade, como Manuel Cambra, ex-presidente da câmara, “médicos de renome e de outras várias áreas”. Todos lhe passaram pelas mãos.
O senhor Celestino começou como aprendiz de outros barbeiros tradicionais, mas, rapidamente, definiu aquilo que sempre gostou de fazer e assumiu o cargo de patrão até aos dias de hoje. “Ensinei muitos barbeiros em S. João da Madeira, outros no Porto, com quem também trabalhei”.
É dos poucos barbeiros da sua idade no ativo. “Sou dos primeiros profissionais, não parece, mas é verdade. Estou em S. João da Madeira desde 1965”, uma vez que é natural de Canelas, Arouca.
Num estabelecimento destinado a homens de barba rija, fala-se de tudo. “São os assuntos dos homens. Futebol, a situação da pandemia e política local”.
Lembra-se do primeiro corte de cabelo que fez. “O meu pai também cortava cabelos e eu, como gostava tanto dele, uma vez deixou-me cortar o cabelo a um miúdo. Quando acabei, lembro-me de ele me dizer: pronto, agora continua sempre”. Foi aquilo que fez.
“Ser florista no mercado permite-me viver de forma confortável”
Luzia Oliveira, vendedora no mercado municipal, herdou a banca da mãe e, ao longo dos anos, foi-se habituando ao ‘corre-corre’ dos clientes que escolhem este espaço para fazerem as suas compras. “A minha mãe vendia um pouco de tudo”, mas destacava-se pelos legumes “frescos e de boa qualidade”. O gosto pela profissão nasceu desde muito nova, pois acompanhava a sua progenitora, ainda o mercado “era na Avenida Renato Araújo, ali mais à frente”. E nessa altura devia ter “uns nove anitos”. Em 1994, assumiu sozinha o negócio. “Ainda era só a parte de baixo, pois esta superior não existia”. Vinha de bicicleta de São Martinho da Gândara, Oliveira de Azeméis, para “ganhar algum”. Tempos “difíceis”. A dada altura, recorda, “tivemos que optar por vender apenas uma coisa. Quem vendia um pouco de tudo teve que escolher” e foi quando se dedicou exclusivamente à venda de flores. “Cheguei a vender flores que colhia de minha casa, mas acabei já com isso. Agora compro para vender. Ser florista no mercado não dá para ficar rica, mas permite-me viver de forma confortável e pagar as minhas continhas”. Luzia optou sempre por não vender flores “caras”. Os seus clientes são aqueles que compram flores para o cemitério. “Não faço arranjos, e muitos deles acompanham-me desde que vim para cá. Vamos criando laços entre nós”. Este negócio, “principalmente das flores”, na sua opinião, já conheceu melhores dias, já que “muitas pessoas querem ser cremadas e isso sentiu-se claramente neste negócio”. O mesmo aconteceu “nestes tempos de pandemia”, acreditando mesmo que a sua profissão poderá ter os dias contados. “Há muito menos gente. A vida não está fácil e, como a maior parte das pessoas trabalha, não tem tempo para vir ao mercado”. Remata, afirmando que as obras que decorrem há vários meses no mercado “não estão a ajudar nada”.
“Já ninguém quer vender nas feiras”
A rotina repete-se duas vezes por semana. Que o diga Anabela Trindade e o marido, Luís Filipe, que acordam, nos dias em que fazem a feira de Espinho e dos Carvalhos, perto das 3h30, para colocarem mãos à obra, para mais um dia que começa de madrugada. “Já fizemos mais feiras, mas agora só fazemos duas”. Luís Filipe garante ter “herdado” esta profissão da esposa, que já vinha de família. “Eu já trabalhei em modulação e em calçado”, mas, a dada altura, “foi mesmo necessário ajudar a minha esposa nos negócios”, afirmando, convicto, que “hoje já ninguém quer vender nas feiras”.
No dia de venda, começam bem cedo a surgir os primeiros clientes. “Por isso temos que acordar de madrugada para ter tudo prontinho, a tempo e horas”, uma vez que os clientes “gostam de chegar logo nas primeiras horas para fazerem as suas compras”, porque, assim “afastam-se das multidões”.
Este casal vende, essencialmente, roupa para crianças. “Não posso dizer que temos um público com uma idade específica. São de todas as idades”, e tentamos sempre “agradar e satisfazer quem nos escolhe há vários anos”.
Apesar das feiras serem um negócio muito antigo, e de terem uma natureza simples, os clientes parecem também ser muito exigentes. Este casal explicou a ‘O Regional’ que o preço definido pelos feirantes “dificilmente acaba por ser o preço final de compra”. A arte de regatear “continua a ser utilizada sempre pelos clientes”, e, muitas das vezes, para se “vender qualquer coisa, temos mesmo que ceder”.
Para estes comerciantes não é um trabalho “fácil”, mas que tem dado para “alimentar a família”. Luís e Anabela foram-se adaptando aos tempos e, por essa razão, vão acompanhando a evolução da profissão, pois será aquela com a qual “vamos acabar os nossos dias”.