Na pacata Rua do Poder Local, em S. João da Madeira, há uma memória que não dorme. A cada manhã, quando as persianas se erguem e os vizinhos saem à rua, é a Revolução que os saúda. Um mural com o rosto de Fernando Salgueiro Maia, observa silenciosamente os passos de quem ali vive. Ao seu lado, um veículo militar Chaimite evoca o momento em que a coragem dos homens ultrapassou o ruído das armas. E mais à frente, quatro cravos metálicos recortados numa estrutura artística reforçam a presença da liberdade conquistada há cinco décadas.
Desde o início da década de 2020, este espaço urbano ganhou novo significado. A homenagem ao capitão Salgueiro Maia e a presença do blindado histórico, cedido pelo Exército Português, transformaram este bairro num lugar de memória viva. A recente requalificação da rua veio reforçar essa identidade, acrescentando novos elementos simbólicos. E são esses símbolos que, mais do que adornos urbanos, provocam lembranças, emoções e reflexões nos seus habitantes.
André Martins, de 71 anos, viveu os anos duros da guerra colonial. “Quando eu fui para lá tinha 21 anos. Era obrigado. Agora a juventude não tem essa obrigação, e muitos não se apercebem da sorte que têm. O 25 de Abril foi uma salvação. Morreram mais de 10 mil. Outros ficaram estropiados. É a grande diferença”, partilhou a ‘O Regional’, com a voz marcada pela memória e pelos anos.
Também José Oliveira, 75 anos, não esquece os dias do mato. “Eu tinha 24 anos no 25 de Abril. Tinha chegado há pouco da Guiné. Muitos não sabem, mas a revolução começou com uma fricção entre os capitães de carreira e os milicianos”. Jovens com licenciaturas que subiam de posto rapidamente. “Foi o início de tudo. Hoje, ver estes símbolos aqui emociona-me. É como se a história me chamasse para casa”.
A memória coletiva vive, porém, em equilíbrio com os olhos do presente. Para Sílvia Ferreira, de 37 anos e de nacionalidade brasileira, a presença de Salgueiro Maia no bairro transcende a simples homenagem. “Fico feliz de olhar pela janela e ver o mural. Saber que aqui está um pedaço da história de Portugal dá-me orgulho. Mesmo sem saber todos os detalhes, encanta-me saber que foi alguém importante para o país”.
Do mesmo modo, Maria Lemos, de 63 anos, sente que os murais são uma forma de devolver voz a um passado silenciado. “Naquele tempo não havia liberdade de expressão. Agora há. É bonito termos estes símbolos aqui, até porque este capitão já partiu, mas deixou marca”.
Um pequeno museu a céu aberto, um ponto de encontro entre o passado e o presente, onde se contam histórias de coragem e resistência. a Rua do Poder Local é também um alerta visual de que a liberdade, ainda que conquistada, precisa de “ser cuidada e lembrada” todos os dias.
No silêncio do mural, na robustez da Chaimite, no vermelho imaginativo dos cravos recortados, há um convite à reflexão. E para quem ali vive, a Revolução não é apenas um capítulo da História mas sim, a vista da sua janela.