Ao longo dos últimos 100 anos, ‘O Regional’ acompanhou a vida de S. João da Madeira, assumindo-se como parte integrante do território que noticia. É, por isso, apontado como um livro de atas da cidade. E, para facilitar a pesquisa, nas atas que contam a História de S. João da Madeira, é agora lançado o livro “O Regional 100 Anos de História”, que pretende compilar todas as edições do periódico, transformando-se num livro de consulta da História desta localidade. Coube a Daniel Neto esse trabalho. O autor percorreu desde as páginas mais censuradas – como aquelas onde escrevia Joaquim Magalhães dos Santos – às mais livres, apresentando uma obra de consulta com um design simples e intuitivo.
A censura e ‘O Regional’
Na nossa memória, continua ainda presente a censura que foi exercida pelo Estado Novo, ao longo de quarenta e oito anos, conforme frisa Daniel Daniel. Em 22 de junho de 1926, menos de um mês depois do golpe militar de 28 de maio, foi instituído um regime de Censura Prévia, como é mencionado na página 34 do livro.
“A medida foi apresentada como transitória, em resultado da suspensão das garantias constitucionais da República. Dois dias depois, os jornais passaram a exibir, na primeira página, a frase lapidar: Este número foi visado pela Comissão de Censura”, conta o autor.
Assim, prossegue Daniel Neto, as redações estavam obrigadas enviar à Comissão provas das páginas, as quais não podiam apresentar espaços em branco. Quando regressavam ao jornal, os artigos para publicação vinham com notações, a indicar se estava autorizada a publicação, se estava autorizada mas com cortes, ou se era suspensa ou proibida.
“Para escreverem estas notas e fazerem os cortes, os censores – regra geral militares reformados – utilizavam grossos lápis azuis que, por ironia, eram, na sua grande maioria, produzidos em S. João da Madeira, pela fábrica de lápis Viarco”, conta também o autor, completando que n’O Regional a informação Visto pela Comissão de Censura surge, pela primeira vez, na capa de 7 de novembro de 1926, surgindo de forma regular até ao final desse ano.
Todavia, conta Daniel Neto na obra agora publicada, que nos anos seguintes essa informação tanto aparecia como “por esquecimento do editor ou descuido da gráfica” não aparecia. “Não temos conhecimento que alguma vez o jornal tenha sido vítima de uma qualquer sanção. Quando muito, uma pequena repreensão”, refere o autor.
Aliás, de acordo com Daniel Neto ‘O Regional’ “nunca foi um problema” para o regime. “Nunca foi utilizado contra a realização do seu programa de reconstrução nacional, contra as instituições republicanas nem contra o bem-estar da nação. Bem pelo contrário. Os homens que tinham o poder de decisão em S. João da Madeira, de que se destacavam António Henriques e Renato Araújo, eram fiéis aos princípios defendidos pelo governo saído do golpe militar de 28 de Maio e mantinham com ele relações privilegiadas”, considera Daniel Neto, apontando que “esta circunstância foi determinante no complicado processo da nossa independência administrativa e, também, no admirável processo de desenvolvimento do concelho, que se registou nos anos subsequentes”.
Em todo o caso, o autor sustenta também que quem geria o jornal se mantinha leal ao estatuto editorial do jornal, salvaguardando os interesses da terra.
Magalhães dos Santos: “o mais atingido pelo impiedoso lápis azul”
“Com a chegada de Marcelo Caetano ao Governo, em setembro de 1968, a malha censória, num primeiro momento, atenua-se. A Comissão de Censura passou a chamar-se Comissão de Exame Prévio mas, pouco tempo depois, a brandura prometida pela Primavera Marcelista gorou-se e a censura passou a ser exercida com mais dureza e rigor do que no tempo de Salazar”, conta Daniel Neto, remetendo para colaboradores dessa altura, como João da Silva Correia, Manuel Pereira da Costa, José Casal, Manuel Tavares e Joaquim Magalhães dos Santos, “cujos textos mereciam especial atenção por parte dos censores”.
Daniel Neto aponta mesmo que, de todos, Magalhães dos Santos foi, “de longe, o mais atingido pelo impiedoso lápis azul” e transcreve uma “espécie de desabafo”: “Como hei-de escrever?! Ultimamente tem sido uma calamidade! Três ou quatro artigos que enviei para a Censura foram-me cortados de alto a baixo! Nem as conjunções, nem as preposições, nem as vírgulas escaparam!”, escrevia Magalhães dos Santos.
Os artigos eram entregues ao editor do jornal que os fazia chegar, via CTT, à Comissão de Exame Prévio de Aveiro. De acordo com o testemunho dado para o livro por José da Silva Pinho – que também viu um dos seus artigos parcialmente cortado – “era um processo algo demorado, o que provocava atrasos na publicação dos artigos”. “Quando havia o risco de os textos perderem atualidade, comunicávamos com a Comissão por telefone para sabermos se estávamos autorizados ou não a publicá-los”, conta José da Silva Pinho.
Quanto à periodicidade da colaboração de Magalhães dos Santos, Daniel Neto diz que esta era, “como se se pode imaginar, muito irregular”, e a situação não melhorou depois do artigo Eu gosto da Censura, enviado para a Comissão de Exame Prévio de Aveiro, com o pedido de publicação escrito pelo próprio punho do autor [ver caixa].
O último artigo de Joaquim Magalhães dos Santos enviado para a Comissão de Exame Prévio de Aveiro veio com a nota de “autorizado parcialmente”, em que foram autorizados 3 dos 20 parágrafos do artigo, publicados na edição número 1570, de 13 de abril de 1974.
“Escrevia muito bem, dava piadas ao governo da altura, de uma maneira que não era direta, mas eles davam por ela”
A implicação da censura para com Magalhães dos Santos é uma posição corroborada por José Almeida, proprietário da tipografia onde ‘O Regional’ passou a ser impresso no final dos anos 50, inícios dos anos 60, como precisa o próprio. José Almeida, proprietário da Gráfica Laborarte, onde O Regional era impresso lembra que a sua empresa começou a laborar em 1957 e “quase logo a seguir” começou a fazer o jornal.
“Nessa altura, não havia nada destes equipamentos modernos, como computadores”, refere, contando que eram muitas as vezes em que Belmiro António da Silva e Joaquim Magalhães dos Santos iam para a gráfica ver o jornal a ser feito.
Inclusivamente, em momentos de maiores dificuldades financeiras, Belmiro António da Silva, segundo conta José Almeida, chegou a financiar edições d’O Regional que, nessa altura, era quinzenal.
“Quando fazíamos o jornal não fazíamos mais serviço para ninguém”, aponta, considerando que fazer o jornal talvez lhe tenha trazido mais clientes do que chatices com a censura. Em todo o caso, lembra que eram obrigados a mandar as provas para a censura e que “era letra a letra a compor, dava uma trabalheira muito grande”.
“Muitas vezes acontecia o jornal estar pronto e vinha cortado [pela censura], tínhamos a tirar a notícia e fazer outra para lá colocar. Às vezes, era o próprio José Soares da Silva, que, lá na tipografa, de um momento para o outro, arranjava uma notícia para tapar aquele buraco”, conta José Almeida, completando que depois de impresso o jornal tinham de enviar para a censura um número de exemplares para “verificarem se o cortado estava lá ou não”.
“Uma vez, aconteceu uma coisa grave”, conta o antigo proprietário da gráfica, explicando que se demorou algum tempo a receber as provas da censura, pelo que imprimiram o jornal e, quando receberam as provas já o jornal estava impresso. Havia cortes num artigo de Magalhães dos Santos. Para a censura, não podiam seguir jornais com o artigo proibido. A solução foi enganar a censura. Imprimiu-se meia dúzia de jornais só para enviar à censura, com o artigo cortado. Os restantes jornais chegaram aos leitores com o texto completo, sem cortes.
José Almeida desconfia que a censura tinha uma implicação com Magalhães dos Santos: “bastava ver o nome dele no artigo, tenho impressão que nem liam, e cortavam logo”. Aliás, houve um número em que “ou de propósito ou por esquecimento” não colocou o nome do autor no artigo e lá passou, aprovado pela censura, o texto de Magalhães dos Santos.
Segundo o proprietário da tipografia, o autor “falava em política, mas dava um rodeio” e “assim não havia mais ninguém a escrever”. “Escrevia muito bem, dava piadas ao governo da altura, de uma maneira que não era direta, mas eles davam por ela”, sustenta em declarações a ‘O Regional’ José Almeida sobre Magalhães dos Santos.
“Talvez não fossem os meus textos muito ‘atrevidos’. Consta-me que a Censura de Aveiro não era das mais ‘meigas’ e julgo que nunca lhes pisei os calos de modo a exercerem grandes represálias. Mesmo assim, alguns textos meus foram cortados total ou parcialmente”, testemunha o próprio Joaquim Magalhães dos Santos, a pedido da nossa reportagem.
Depois da revolução, não considera que se tenha tornado mais “atrevido”, até porque “toda a cautela era pouca”.
Todavia, admite que, antes, os seus escritos despertavam a atenção “dos cândidos censores” e que “depois do 25 de abril as coisas se tenham alterado substancialmente”.
“Parece-me que nunca pisei o risco. Considero-me um homem de esquerda, mas nunca por nunca um incendiário”, sublinha ainda Magalhães dos Santos em declarações a ‘O Regional’.
“Consegui tornar o livro de maneira simples, intuitivo, um livro de consulta e não de leitura”
O design do livro ficou a cargo do António Loureiro, através de uma parceria d’O Regional’ com a Câmara Municipal.
“Numa primeira fase fiz um estudo ao jornal, principalmente às suas edições mais antigas”, indica o designer, realçando as fotos, o estilo, como a paginação era feita, os logos utilizados, tipo de letra e as cores. “Usei neste trabalho muito o azul, a cor muito utilizada antigamente na sua impressão. Foi, na verdade, a que mais gostei. O jornal era mais rico antigamente. Era menos formatado. Graficamente era mais atraente”.
António Loureiro revela que teve em conta neste “desafio” a história deste jornal e das suas “alterações”, essencialmente “gráficas”, que sofreu ao longo dos anos.
O mais difícil para o designer foi o início. “Como e por onde vou começar? Qual é o caminho a seguir?”. Relativamente ao mais aliciante, garante que foi “conhecer toda a história de S. João da Madeira”, que desconhecia, e que descobriu durante a criação deste trabalho. Um dos muitos momentos que destaca no livro, além dos textos, são as imagens. “Mostram a cidade antigamente, as pessoas, viaturas. A cor sépia de muitas fotografias é maravilhosa, bem como os pormenores, as cores e os recantos desta cidade”.
Como um dos momentos marcantes deste livro, destacou uma “manifestação com muitas pessoas na sede do PS, em 1974”, junto ao ex -cinema Imperador (agora Casa da Criatividade), que juntou muitas pessoas.
Agora que o trabalho está pronto, assegura que livro está bem conseguido.
“Da minha parte não alterava nada. Neste momento, não sinto essa vontade. Não quer dizer que depois de ter o livro na mão isso não aconteça”, vinca o designer.
“Acho que consegui tornar o livro de maneira simples, intuitivo, um livro de consulta e não de leitura. Este é um livro para os sanjoanenses, já que revela a história de S. João da Madeira”, considera António Loureiro.
Ser convidado para integrar este projeto foi para si um “privilégio”, principalmente por fazer parte da história desta cidade. “Está ali o meu trabalho para ser visto, avaliado, e que andará de mão em mão junto dos sanjoanenses”.
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Gosto, sim, senhores e só ninguém tem nada com isso, mas também eu cá tenho as minhas razões:
(…) Apesar de a Censura me ter cortado, em tempos que já lá vão, diversos artigos que ela entendia merecedores de poda ou tumba…
Apesar de a Censura não permitir que se diga muita coisa que bem falta fazia que fosse dita, para ver se punham certas coisas no são…
Apesar de a Censura apenas atrasar a divulgação de certas queixas ou observações que, é só dar-lhes tempo, acabam por ser sabidas e correr mundo…
Apesar de tudo isso… eu gosto da Censura.
Mas, como sei que este gosto parece estranho eu explico porquê:
Gosto da Censura porque acho que ela espevita a habilidade de quem escreve. Não falo por mim, que nem sou escritor, nem escrevinhador, nem articulista, nem plumitivo, nem nada que já tenho rótulo impresso.
Falo é por aqueles que podem ser engarrafados em frascos etiquetados com qualquer daquelas designações e que têm de espremer a moleirinha para conseguir dizer o que têm para dizer de modo que a Censura deixe passar. E como, se as coisas forem ditas charramente, cruamente, directamente, não passam, é vê-los a inventarem subterfúgios, a recorrerem a parábolas, a fábulas, a lendas, a situarem a acção das suas histórias em países imaginários, em terras que não vêm no mapa, enfim, a taparem a nudez forte da feia verdade com o manto diáfano da maquilhada fantasia.
Que prodígios de imaginação se não conseguem!
Que assombros de equilibrismo se não alcançam!
Que caracterizações magníficas se não obtêm, a ponto de as mães dos visados não conseguirem descobrir-lhes a identidade, disfarçada pelas tintas, pelos bigodes, pelas perucas!
A quem devemos nós, a quem deve a Literatura Portuguesa agradecer essas subtilezas, essas artimanhas, esses truques? À Censura. (…)
Texto de M. dos Santos
Publicado n’O Regional antes de 25 de abril de 1974
Cátia Cardoso