Marçal Correia, 92 anos, é o único filho vivo do escritor João da Silva Correia. Evoca nesta entrevista a memória de um nome maior das letras de S. João da Madeira, falecido há 50 anos.
Jornal ‘O Regional’ - Numa altura em que se assinalam 50 anos da morte do seu pai, o reconhecido escritor João da Silva Correia (1896-1973), até que ponto ser filho de uma das maiores referências literárias de S. João da Madeira foi uma grande responsabilidade, e que impacto é que isto teve na sua vida?
Marçal Correia - É difícil dizer ao certo qual o impacto, mas teve naturalmente, porque foi um belíssimo pai, um belíssimo chefe de família. Um pai meigo, muito dedicado e afável e exigente com as obrigações dos filhos.
Tinha uma visão do mundo muito correta, para o conseguir, dentro do possível, olhou-o sempre com os princípios de humanidade. O que falta muito neste mundo é humanidade. Fala-se só de guerras e em riquezas, ninguém fala na pobreza que há por aí, aos milhares.
Mas, ao longo da sua vida, as pessoas associavam-no ao facto de ser filho do escritor?
Não, não havia muito essa associação. Podia haver umas pessoas de uma relação mais próxima que faziam sim essa ligação. O meu pai tinha aqui muitos amigos em S. João da Madeira, pois era natural desta cidade e trabalhava cá, e tinha muitos amigos ainda em Oliveira de Azeméis, porque foi para lá estudar. Mas, na verdade, nunca senti o peso de estar associado ao nome do meu pai.
O emblemático romance “Unhas Negras”, escrito pelo seu pai em 1953, é certamente a maior obra de referência na história do concelho, narrando a vida dura dos operários da indústria da chapelaria, no início do século XX, em S. João da Madeira. Assistiu e tem memória desta jornada escrita do seu pai?
Não. Foi publicado em 1953. Eu ainda era novato. Eu nasci em 1931 e nesse tempo o fascismo atrasava-nos, porque havia discussões, o correto era então o governo… Mas eu já andava metido na política aos 22, até mais cedo. Numa oposição ao governo, as falsas edições, que serviam de propaganda e movimentadas, era novito e tal…
Não tem nenhuma memória do seu pai escrever o “Unhas Negras”, nem de ele comentar em casa que o estava a escrever?
Não, ele tinha o escritório. Fechava-se lá e escrevia. Depois havia um fulano que passava aquilo à máquina e, mais tarde, comprou uma máquina de escrever, e nós vivíamos um pouco à parte disso. Éramos novos, tínhamos amigos, saímos, embora pouco. Naquele tempo ainda não tinha carta, mas depois tirei a carta e movimentava-me melhor (risos).
Esse escritório de que fala era, então, o grande refúgio do seu pai?
Sim, era. Era ali que ele escrevia, passava horas sem fim. O mundo dele estava ali. Em silêncio ou com música clássica e sempre que possível de janela aberta, com visão para o jardim da casa.
Chorei muito quando ele morreu. Ao fim de muitos anos ainda tenho muitas saudades dele, era muito bem-disposto, gostava de ouvir anedotas, ria e era um ser humano fora de série. Sinto muitas saudades dele.
Escrevia à mão ou na máquina de escrever. A família mantém o seu espólio como, por exemplo, a primeira máquina de escrever que ele comprou?
Infelizmente, não temos, desfizemo-nos dela, e nem sei a quem a demos. Uma pessoa qualquer que precisava e, como estava parada, demos.
Entretanto, já falei com o Presidente da Câmara e vou começar a juntar o espólio dele, aquilo que resta, porque não vale a pena aquilo andar pelas mãos a estragar-se e mal conservado. Há um trabalho feito dele do Dr. Renato Figueiredo que não ficou completo, pedido pela Câmara, mas que está muito, muito feito e que, até agora, ainda não foi bem aproveitado.
Temos aí os cadernos todos que ele ia fazendo. Era uma pessoa extraordinariamente culta e um apreciador da sua obra.
Continua patente, em frente à Biblioteca de S. João da Madeira, uma exposição de rua, de caráter itinerante, que visa divulgar a vida e obra de seu pai. Aquele é o espelho do seu pai, é de facto a vida do seu pai? Que avaliação faz, uma vez que esteve na cerimónia de abertura?
Está interessante. Acho que mostra um pouco quem foi. Estive na apresentação e acho que está um trabalho bom e muito bonito.
Do que viu, do que é que mais gostou?
Gostei, dentro daquele minimalista, podia ser uma coisa muito grande, estava muito bom.
“Em minha casa sempre se falou muito de escrita e de livros”
Quer com isso dizer que é uma oportunidade dos sanjoanenses conhecerem melhor como se vivia noutros tempos em S. João da Madeira e na região, a partir dos testemunhos que o seu pai deixou através da sua produção literária, é isso? Esta nova geração, que não o conhecia, acha que através da exposição consegue perceber quem era João da Silva Correia?
Penso que sim. Muitos deles sim, outros não. A juventude de hoje é muito diferente da nossa. São muito chamados para estas coisas, para aquilo, e uns é música, outros é desporto. No nosso tempo não era nada disso, e eles, hoje, espalham-se mais nos interesses.
Felizmente há professores nas escolas de S. João da Madeira que têm essa preocupação, e falam do escritor e da sua vida. Esta câmara tem sido incansável na promoção da vida do meu pai, em homenagens, em fazer a reprodução dos livros, em editar, praticamente todos, já com edições repetidas. Há um prémio literário. Têm sido incansáveis.
O seu pai tirou o curso de professor primário, mas nunca chegou a exercer. Tornou-se empresário, comerciante de solas e de cabedais para a indústria de calçado da região. Trabalhou com o seu pai a vida toda…
A atividade do meu pai foi muito variável. Fabricava coisas para carruagens de cavalos, depois mais isto, mais aquilo, nunca parava. Depois chegaram as solas e os cabedais para a indústria de calçado da região. Foi com ele que aprendi tudo. Será sempre a minha maior referência e fonte de inspiração.
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