Por detrás do preconceito e do estereótipo associado aos ciganos, há histórias de vida que não surgem apenas na ficção. No terreno da Devesa Velha onde a família Maia reside, o patriarca sempre deu primazia à família, negando qualquer pedido exterior
O patriarca da família de etnia cigana, residente na Devesa Velha, já vive em S. João da Madeira há mais de 50 anos. João Carlos Soares, conhecido por Maia, afirmou ao jornal ‘O Regional’ que algumas das tradições ciganas se mantêm e que não pretende sair dali para uma habitação social. “Há muito tempo, pagava renda perto do cemitério n.º 3, mas depois vim para cá com a minha família. Somos 12; antes, éramos nove. Os meus filhos nasceram cá, cresceram e casaram”, contou o septuagenário. “Não gosto de apartamentos; gosto de casas baixinhas. Trabalho com sapatos há 30 anos… Onde meto tudo?”, acrescentou retoricamente. Com 71 anos, Maia já não trabalha há mais de cinco. Refere que a família também trabalhava nas feiras, mas que os chineses “acabaram com o negócio” por causa dos preços praticados. “Agora, os nossos jovens vivem do Rendimento Social de Inserção [RSI]; dá para comer. Digo-lhes para não se meterem em problemas”, garantiu. “Se não fosse esse dinheiro, não sei como seria”, admitiu.
Mateus Soares, sobrinho de Maia, comentou, em entrevista ao jornal, que é “difícil” para um cigano “arranjar trabalho”. “Há pouco tempo, fui a uma fábrica, fiz a inscrição e disseram-me que iam ligar-me. Nunca o fizeram”, exemplificou o jovem. “É mais fácil arranjar trabalho na Uber. Aceitam; eles não sabem que somos ciganos, não é?”, observou. Para o tio de Mateus Soares, o preconceito não existe como outrora. “Sinto-me bem-vindo em S. João da Madeira e sei que as pessoas me respeitam. Sou bom para as pessoas e não as deixo fazer asneiras”, assegurou, confiante. Já o sobrinho considerou que há certas dificuldades que, diariamente, enfrentam. “Por exemplo, as mulheres ciganas só conseguem fazer cursos ou [trabalhar] na Uber. Só agora é que a minha mulher vai entrar num curso; ela sente dificuldades por ser cigana”, afirmou Mateus Soares. “Para nós, é um orgulho ser cigano. Eu tenho orgulho em ser cigano. Há outros [ciganos] que não, até para não sofrerem preconceito”, acrescentou. Pai de uma menina que, em breve, fará dois anos, o sobrinho de Maia realçou que só quer “o melhor” para a sua filha. “Vou fazer tudo para o bem dela. Vou conseguir. Tenho que conseguir”, enfatizou.
Maia partilhou também o facto de, ao longo dos anos, várias pessoas terem pedido guarida ao patriarca da comunidade cigana no terreno de Devesa Velha. Nunca aceitou, até porque a comunidade é exclusiva para a sua própria família. No entanto, há uma exceção. Há um casal que, apesar de não ser de etnia cigana, reside ali há praticamente 10 meses. “Não tinham onde dormir. Demos-lhe um teto, água e luz. Quem pôs a mão fomos nós”, declarou Maia. “Somos de Deus. Deus não se vê, mas vê-se as pessoas boas; essas é que são «Deus»”, descreveu. Então, quem é o casal e como é que veio ali parar?
“Eu tinha tudo! Passei para uma vida de miséria”
Maria Emília Cabo espreitou timidamente da sua casa e convidou-nos a entrar. Com uma expressão tensa e preocupada, fechou a porta, mas não com recurso à habitual chave. Usou um cadeado, que apenas impede que as pessoas não abram a porta, uma vez que se consegue olhar para o interior da habitação. A sua ‘casa’ não pode ser descrita como uma habitação comum, uma vez que, outrora, era uma oficina de carros da comunidade cigana. No dia em que a comunidade a aceitou e acolheu no seu seio, Emília e o marido, este último diagnosticado com cancro cerebral em fase terminal, conseguiram sair, literalmente, de debaixo de uma ponte e tentar fazer daquela oficina o seu lar. Ou melhor, Emília tentou, dada a incapacidade do marido de ajudar mediante a sua condição de saúde. A habitação onde residem, de aspeto semelhante a uma barraca, é fria e despojada de qualquer luxo. Recentemente, Emília Cabo teve que vender a sua televisão para conseguir “sobreviver”. “Eu residia em Nogueira do Cravo e tinha uma vida estável. Tinha casa, trabalho, contas em dia, animais e o meu carrinho”, contou Emília Cabo, em entrevista ao ‘O Regional’. “Estava há oito anos divorciada quando conheci o meu marido; sentia-me um bocadinho só, até porque os meus filhos tinham a sua própria vida. Ele [marido] veio para minha casa e, a partir daí, a minha vida mudou drasticamente… Eu tinha tudo! Passei para uma vida de miséria”, declarou.
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