Sociedade

“Depois da morte de um filho, deixamos de viver para sobreviver”

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Fomos procurar histórias de sanjoanenses que perderam filhos e que, ao fim de décadas, assumem que a ferida continua por sarar.

O assunto da morte de um filho é incómodo, tanto para quem entrevista, como para quem está à nossa frente. Há pausas forçadas nas respostas. Lágrimas. Faltam as palavras e até as perguntas. É um reviver de histórias que, apesar do tempo, parece não se encontrar respostas nos livros ou mesmo junto de especialistas. São pais e mães que perderam os filhos de diferentes formas. Nem todos aceitaram falar do assunto. Outros pedem reserva de identidade e nenhum permitiu ser fotografado. Justificam que o tempo passa, mas a dor “mantém-se e nunca sarou. Uma ferida aberta e muito sofredora”. Fábio Xavier morreu vítima de afogamento, a 13 de março de 1996, quando frequentava uma aula de natação nas Piscinas Municipais de S. João da Madeira. Vinte e sete anos após a morte da criança, Alice Ferreira, agora com 56 anos, jamais imaginou que, há mais de duas décadas, viria a perder o seu primeiro filho (com 4 anos), numa aula de natação, e que aquele beijo da manhã seria o último. “É uma dor e uma ausência que não se explica, que nunca terá nome. Não há palavras para se descrever um sentimento tão dolorosa e cruel que nos mata a cada dia”.
Após a morte do filho, Alice recorreu à medicação durante mais de nove meses. Falou com especialistas, amigos. “Sentia a necessidade de falar do assunto”, uma vez que não conseguia perceber a razão da perda do filho. Tinha que desabafar, “para encontrar respostas”. O marido era o oposto. Remeteu-se ao silêncio. “Não há nada que nos ajude a lidar com a morte de um filho, nem psicólogos, nem psiquiatras. Eles não nos vão dizer aquilo que queríamos ouvir naquela altura, que era ter o nosso filho de volta”.

“Não é expectável que um pai perca um filho”

Vânia Sousa Lima, docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, explica a ‘O Regional’, que há múltiplas formas do suporte ser dado por um profissional de Psicologia e que as mesmas “terão de ser ajustadas” às necessidades específicas de cada um, dependendo do contexto em que esta perda ocorreu. “Não é expectável que um pai perca um filho naquela que é a sequência normativa da vida. Estamos perante um acontecimento com um potencial de dano muito grande – como é qualquer perda –, ao que acresce um caráter antinatural. Este será, talvez, o único elemento comum à experiência. Ou seja, um confronto com a perda e o luto é universal, mas a forma como se lida é absolutamente idiossincrática. A resposta por parte de um profissional de saúde mental tem que atender estas especificidades”. A docente revela que, em primeira instância, o profissional de saúde tem que “validar este sofrimento inequívoco. Depois, procurar aqueles que são os elementos que podem contribuir para uma reintegração da experiência e uma redefinição do próprio significado de si, como pai, como mãe e como pessoa, seja de uma perspetiva individual, seja de uma perspetiva relacional com o outro progenitor ou da família alargada”.
Ao fim de todos estes anos, Alice continua a não evitar as lágrimas, a revolta e a tamanha dor. “Nunca mais somos as mesmas pessoas. A vida deixa de ter sentido. Depois da morte de um filho, deixamos de viver para sobreviver". Durante muito tempo, conta, tinha uma frase feita e que a repetia junto de amigos mais próximos: “Gostava de ter sentido o sofrimento do meu menino para saber o que passou, o sofrimento que sentiu”. As idas ao cemitério também eram “muito difíceis”. “Não me faziam bem, era sofredor porque ele estava ali. A imagem também e eu nada podia fazer”.
Alice voltou a ser mãe dois anos após a morte de Xavier. “A dor continuou, porque nenhum filho substitui o outro”. Em 2010, a vida volta a pregar-lhe uma partida. O marido morre com um aneurisma. “Perdi o meu pilar de todos os dias. O meu parceiro”. Alice revela que, nessa altura, só pensava que tinha a filha ainda muito pequena e que “não podia desistir por ela”. Alice diz que “as dores de quem perde um filho ou marido são diferentes, mas complementam-se”, o que a obrigou a aprender a viver com a ausência e com a “saudade do tempo”. Esta sanjoanense acrescenta que, com a morte do filho e do marido, aprendeu que, durante o processo do luto, há palavras que nem sempre não necessárias ouvir. “As pessoas não fazem por mal, mas não é confortável ouvir que o tempo cura tudo e que vamos conseguir superar a dor. Isto não nos ajuda. Ainda nos revolta mais. Acabamos por arranjar estratégias para desviarmos as conversas”, enfatiza.
De acordo com a experiência clínica de Vânia Sousa Lima, “as pessoas vão desenvolvendo competências de seleção de interlocutores. Isto é, claramente, inteligente e desejável”. Ou seja, “com quem é que eu falo sobre o quê, em que circunstâncias e quem é que pode ser um suporte. É uma questão de ajuda versus quem é que não se constitui como ajuda”. Embora a interpelação das pessoas poder ser vista como uma expressão de cuidado e afeto, “pode não ser percebido pelo próprio enlutado como sendo gerador de ganho. A capacidade de, na rede de suporte social – amigos, família alargada ou grupos de apoio –, selecionar as pessoas que são de mais ajuda parece-me ajustado”, aconselha a docente de Psicologia.

Poderá ter acesso à versão integral deste artigo na edição impressa n.º 3991, de 6 de junho de 2024 ou no formato digital, subscrevendo a assinatura em https://oregional.pt/assinaturas/
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