Sociedade

Cândido Costa: “Eu consigo descrever S. João da Madeira de olhos fechados num papel”

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Referência do futebol, Cândido Costa começou a carreira na Sanjoanense, em S. João da Madeira, a cidade que considera ser a sua terra, à qual agradece tudo o que foi e é na vida a cidade da qual se orgulha, onde continua a ser “bem tratado".

Jornal O Regional - Foi no bairro da Mourisca, em S. João da Madeira, que deu os primeiros pontapés na bola. Que memórias tem desse tempo e desse bairro?
Cândido Costa - As melhores. Fui muito feliz em S. João da Madeira, mas, em particular, neste bairro que me permitiu ser uma criança a viver na plenitude e ter uma infância igual àquela que vem nos livros, com muita liberdade, a brincar e praticar desporto, no parque da Dona Jane. Algumas brincadeiras ficaram perdidas no tempo, mas, atualmente, muitas crianças nem sabem o que é. Foi nessa altura que aprendi a jogar futebol e tive a sorte de ser de uma geração em que ser reguila não era ser mau. Éramos crianças saudáveis, que andavam sempre juntas e com uma felicidade enorme. Na verdade, eu consigo fechar os olhos e, num papel, desenhar S. João da Madeira.

Quem era este Cândido Costa nessa altura?
Sempre fui uma criança feliz, divertida, com muita força de viver e com um grande enquadramento social, por força do investimento dos meus pais. Gostava que todas as crianças do mundo tivessem a felicidade e o amor que sempre recebi. Não consigo encontrar um ponto desfavorável na minha infância. Até do próprio bairro em si. Muitas pessoas podem associar a palavra bairro à falta de valores, confusões, pessoas malformadas. No bairro da Mourisca, éramos todos família, mesmo com as suas diferenças. Era multicultural porque, apesar de ser um meio pequeno, tínhamos lá pessoas de várias realidades e isso foi muito importante para mim, para encarar o direito à diferença e para me dar um cunho de garra. Eram pessoas de muito trabalho.

Estudou e cresceu nesta cidade. Ainda mantém amizades desse tempo?
Sim. Faço questão disso. Muitos deles tiveram destinos completamente diferentes dos meus, mas continuo a ser o “Candito” para todos eles e nada disso mudou.

Pisar o relvado da Associação Desportiva Sanjoanense tem sempre um sabor especial?
Caramba, se tem! Aquele lugar é mágico para mim! É difícil conter a emoção e não me lembrar por momentos do que por ali vivi e o quanto fui feliz. De todas as fases da minha vida, tenho a consciência que aquele lugar é um espaço irrecuperável e que será impossível repetir a energia, a leveza, a espontaneidade de alguém de pura inocência que já ali andou.

Jogar foi sempre a sua paixão. Foi um aluno aplicado?
Eu não era bom aluno, não por falta de intelectualidade ou de capacidade de raciocínio, mas, sim, pela falta de investimento que eu fazia na escola. Consegui sempre ter a arte e o engenho de não reprovar, mas era sobre o ónus do castigo e não pela perceção clara que estava a fazer um belo investimento na minha vida para o futuro. Os meus pais vincavam, de forma clara, que eu não podia reprovar e essa aflição e receio do castigo faziam com que eu, com alguma esperteza, usasse um copianço aqui e ali, o que, nessa altura, era uma prática muito recorrente, mesmo dos melhores alunos, e fui para Lisboa com o 9.º ano feito.

Não era um brilhante aluno como diz. Era mais o animador da sala, é isso?
Completamente! (Risos) Estudei na EB/2.3 e, depois, na Escola Serafim Leite. Eu era muito de distrair o pessoal nas aulas, de tirar a cadeira ao colega e fui muitas vezes expulso por isso! (Risos) Mas é curioso que fiz sempre tudo de uma forma saudável, de rebeldia da idade e não tenho ninguém que hoje em dia me diga que eu sou ou era uma besta ou mal-educado.

Qual é, então, neste momento, a sua ligação a S. João da Madeira?
Não visito tanto quanto queria. Eu já não vivo lá desde os 16 anos. Sempre que posso, vou visitar amigos e família. Sou um sanjoanense agradecido, que nunca feriu a sua cidade, sempre me senti uma pessoa muito acarinhada pelas gentes de S. João da Madeira. E esse, para mim, é o melhor reconhecimento que posso ter da minha cidade, principalmente quando me tratam por «Candito», quando perguntam pelos meus pais, pelos meus irmãos e se estou bem.

Tem dois irmãos, mas só o Cândido seguiu a paixão por esta modalidade desportiva de forma profissional. Como nasce, na verdade, o Cândido jogador?
Não me recordo da idade, mas o meu pai conta que me levou aos 8 anos para a Sanjoanense, pelos sinais que eu ia dando, quando tinha uma bola por perto. Eu andava nas ruas da Mourisca sempre com a bola por perto. Na verdade, não tenho uma família com tradições futebolísticas como outros jogadores de S. João da Madeira, pelo contrário, pois a minha mãe era gaspeadeira e o meu pai trabalhava na Olmar. O meu irmão mais velho teve uma ligação ao futebol, mas com muito pouco investimento da parte dele e o meu, provavelmente, foi alimentado pela minha irreverência da própria idade e por uma fúria de um miúdo de bairro de querer vencer. E juntando a tudo isso uma mentalidade que eu tinha da importância que o meu pai tinha no desporto, tudo se conjugou para, aos 15 anos, despertar o interesse de vários clubes. Porque, na verdade, eu fazia as coisas sempre muito bem, com a ajuda do meu pai, que chegava a casa e levava-me para correr, treinar o pé esquerdo, que nunca desistiu de mim e do meu talento.

“A Sanjoanense era uma equipa muito forte”

Quando começou a jogar na Sanjoanense, que equipa encontrou?
A Sanjoanense era uma equipa muito forte, com uma liderança muito democrática. Eu tive a sorte de ter uma geração muito forte. O Zequinha encontrou um grupo de miúdos campeões quase sempre. Éramos muito unidos, uma espécie de irmandade que tinha muito orgulho em ser sanjoanense. Tínhamos uma equipa muito forte, Tiago Teixeira, Gustavo Oliveira, o Carlos, o Vítor, que já faleceu, criámos um grupo que era muito precoce fisicamente, mas praticamente só perdíamos com o Porto ou com o Boavista nas fases finais e era praticamente a equipa de seleção de Aveiro. Naquele tempo, éramos, com toda a certeza, na região de Aveiro, a equipa mais forte e basta ver os arquivos. Gostava de salientar que o escalão acima também era uma boa equipa, porque era a geração do Ricardo Sousa, do «Charuto» e de muito outros.

Décadas mais tarde, ainda se emociona quando pisa o relvado do cam­po da Sanjoanense. Posso concluir que a Sanjoanense foi a sua grande escola para aquilo que foi enquanto jogador?
Claro que foi! A Sanjoa­nense foi aquilo que eu precisava, no momento certo.

Aos 16 anos, saiu de S. João da Madeira e foi para Lisboa, para jogar nas camadas jovens do S. L. Benfica. Uma adaptação, segundo sei, muito difícil?
Muito mesmo. Custou-me este corte com a minha cidade, com a família, quando tinha apenas 16 anos, cheio de borbulhas na cara… Eu vivia num bair­ro e era lá que eu tinha toda a minha vida, os amigos e sou confrontado com uma realidade maior, multicultural, um mundo completamente diferente e exigente.

Disse, recentemente, num programa de televisão que “Era o maior em S. João da Madeira e passei a ser o burro e o cromo em Lisboa”. Porquê esta afirmação?
Porque, em S. João da Madeira, tinha um papel no meu leque de amigos e no enquadramento social de alguém de referência. Era eu que ditava a lei! (Risos) Vou para a capital, onde não conhecia ninguém, sem amigos, e, rapidamente, me apercebi que não mandava em nada disto. Não deixava de ser um parolo, porque era ali que estava tudo o que era grande e havia pessoas mazinhas.

Poderá ter acesso à versão integral deste artigo na edição impressa n.º 3986, de 2 de maio de 2024 ou no formato digital, subscrevendo a assinatura em https://oregional.pt/assinaturas/

 

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