Sociedade

“A minha vida foi uma escola”

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Com uma vida dedicada ao ensino, Fernando Andrade, hoje com 73 anos, esteve à frente dos destinos da EB/3 durante duas décadas. E foi o grande impulsionador de iniciativas como o Carnaval das Escolas e das Marchas de S. João

Jornal ‘O Regional’ – O que é feito de si, professor Andrade?
Fernando Andrade – Eu comprei há muitos anos no Furadouro, em Ovar, esta casa a pensar naquele que seria o meu refúgio, onde iria passar o meu tempo de lazer, de alegria, e sempre com a inspiração de ter por perto a praia e o mar. É aqui que tenho o meu ateliê, onde me dedico à área da cerâmica, do ferro forjado, madeira, coisas que domino por completo, e passo horas sem fim a criar. Recebo também muitos professores que me pedem para passar por cá, para fazerem estágios, porque têm, na verdade, a teoria, mas falta-lhes a prática. Eu sempre gostei muito de ensinar e sinto-me muito bem. Continuo a fazer aquilo que sempre gostei. Criar e ensinar.

O professor reformou-se aos 50 anos. Muito cedo, não acha?
É verdade. Depois de acabar o chamado Curso Industrial, tive a melhor nota, apaixonei-me por aquela área, e fui logo convidado pelo diretor para dar aulas. Tinha na altura 18 anos. Como comecei a trabalhar muito cedo, e o facto de o tempo em que eu andei no Ultramar, depois em Moçambique, e todo esse período no serviço militar contou a dobrar. Eu, nessa altura, ainda me interroguei se valia a pena, uma vez que era ainda tão novo, mas como tinha tantos projetos ligados às artes, tinha medo de não aproveitar a oportunidade. O certo é que, poucos meses, depois a lei da reforma mudou. E nisso tive sorte.

Tem feito várias exposições, onde mostra aquilo que faz. Não é adepto das redes sociais e diz que as novas tecnologias não lhe fazem falta. Nunca sentiu essa necessidade para promover os seus trabalhos?
Não. As pessoas chegam até mim da melhor forma. Do boca a boca. Isso é o melhor que posso ter. Não sou nada de informática. Custa-me ver, principalmente os jovens que são aliciados para as novas tecnologias que, se não forem bem utilizadas, fazem-lhes mal. Não gosto de ver num restaurante famílias completas agarrados aos telemóveis. Eu mal sei ligar um computador. O meu telefone é do mais simples que há. Eu evitei sempre a utilização dos computadores, porque me obrigava a estar concentrado, sentado e tirava-me capacidade criativa.

O seu nome faz parte da história de S. João da Madeira. Acha que as pessoas o reconhecem mais como o Fernando Andrade, o professor, ou o homem que esteve ligado à política durante vários anos?
Acho mais como o professor e, na verdade, nunca deixei de ser uma figura pública que é abordado na rua, e sinto que as pessoas me reconhecem mais pela vertente do ensino e da televisão. Tenho ainda pessoas que me abordam na rua e dizem que eu fui professor dos netos e sou ainda abordado por antigos alunos. Mas é curioso que ainda, hoje, muitas pessoas com quem me vou cruzando me falam da televisão, e até dizem que faziam muitas coisas que aprendiam. Relativamente à política, acho que não.

Vamos começar pelo ensino. Foi professor de Educação Visual e Trabalhos Manuais na EB2/3 durante vários anos. Que memórias tem desse tempo?
As melhores. Como professor foi sempre um apaixonado pela disciplina. Reconheci que a disciplina era muito útil para os jovens e lutei sempre para que a mesma fosse muito dignificada, ao ponto de eu ter conquistado que aquela escola, o agora chamado antigo ciclo, se transformasse num Centro de Estágios de professores desta área, onde eu passei a ser o orientador dos mesmos, e percorríamos o país à procura de artesãos e até de empresas que se dedicavam a essas áreas.

Como eram os alunos nessa altura?
Eram alunos humildes, muito educados na escola e em casa, respeitavam muito os professores, o que, infelizmente, atualmente, isso não se verifica. Nós chegamos a ter 1300 alunos numa escola que foi preparada para ter 800, uma vez que, desde cedo, fomos considerados uma escola exemplar. O professor era para os alunos uma autoridade.

Anos mais tarde passa a diretor, e até ao sábado a escola tinha aulas. Foi um desafio?
Tínhamos que dar aulas ao sábado pelo número elevado de alunos. Vinham alunos de Arrifana, Bustelo, S. Roque, Cucujães, que procuravam aquela escola. A minha posição foi sempre muito contrariada por muitos colegas, mas sempre entendi que não podíamos fechar as portas aos alunos. Mas rapidamente o ministério apercebeu-se disso e começou a construir outras escolas na região, e o número de alunos começou a reduzir. Foi claramente um desafio ser diretor. Estive à frente da escola 20 anos. Uma vida.

O que foi mais difícil enquanto diretor?
Foi quando a política começou a entrar nas escolas, e os partidos tentaram ter alguma influência, ao ponto de questionarem a razão da existência de um diretor executivo.

“Na minha altura, a disciplina impunha-se”

Quem o conhece sabe que a arte de ensinar foi sempre uma paixão. O ensino mudou nos últimos anos. Via-se, atualmente, a lecionar com todas estas alterações?
Acho que seria muito difícil. Mudou muita coisa. Na minha altura, a disciplina impunha-se. Dou-lhe um exemplo: enquanto fui diretor nunca nenhum aluno foi expulso. Orgulho-me disso, porque muitos deles faziam para que isso acontecesse. Hoje, acho que se deixa andar muito as coisas e nem sempre as coisas correm bem. Nós revolucionamos aquela escola. Os intervalos tinham música, tínhamos uma rádio interna, onde os nossos alunos faziam programas de rádio. Os professores também estavam apaixonados pela profissão. Hoje os docentes têm razões mais do que suficientes para essa desmotivação.

É um dos fundadores do Carnaval das escolas em S. João da Madeira e, mais tarde, das Marchas. É um homem orgulhoso, quando olha para estes dois eventos que ainda fazem parte do calendário escolar da cidade?
Sinto-me muito orgulhoso, principalmente, porque, naquela altura, as escolas eram ainda muito fechadas à comunidade. Imagine que algumas delas até tinham arame farpado. Com a presença de estagiários nas escolas, e provavelmente numa altura em que se aproximava o carnaval, numa das nossas conversas entendemos que esta seria uma forma interessante de vir para o meio da população. E assim foi. Nesse ano, cada um saiu com uma turma praticamente para fazer barulho (risos). Os bombos eram latas da cola que fomos buscar às fábricas de sapatos. Algumas roupas foram emprestadas para os professores, e as crianças iam à maneira deles. Íamos até à Praça Luís Ribeiro, passávamos pelo antigo cinema Imperador, pela estação e regressávamos para a escola. E foi nessa altura que percebemos o impacto que essa saída teve junto das escolas e da própria população, uma vez que, no ano seguinte, outras escolas também quiseram participar, sempre de forma espontânea.

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