Opinião

Um recital a transbordar emoção

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Em 1881, John Singer Sargent pintou o retrato de Samuel Pozzi. Na pintura, o retratado aparece com trajes domésticos e com uma descontração incomum para a época.
No século XXI, o escritor britânico Julian Barnes ao observar o quadro exposto quis procurar mais informação sobre o pintor norte-americano, nascido em Itália e sobretudo, perceber quem realmente foi o homem eternamente representado na tela de modo tão informal. “Samuel Pozzi em casa” é o nome do quadro e no livro “O homem de casaco vermelho”, o quotidiano da europa central, na mudança do século, é minuciosamente escalpelizado.
O momento de concretização da obra do pintor é em período de difusão de novos meios para se obter imagens.
A dialética entre novas tecnologias e formas mais antigas de expressar a arte, acompanha a evolução das sociedades.
É transversal às palavras, às imagens, aos sons.
Expressa-se por meios ditos arcaicos: livro, retrato pintado, instrumentos acústicos.
Preferidos por muitos, em desuso para outros.
Não apenas por uma questão geracional. Essencialmente, pelo interesse desenvolvido e pela sensibilidade adquirida.
Um recital de piano é um formato que atravessou décadas.
É intemporal.
É um acontecimento.
É eterno.
É intimista.
Nelly Santos Leite propôs-se a um, no passado dia 15 de outubro.
Várias gerações compunham a plateia dos Paços da Cultura. Graus de familiaridade, relações de amizade, pessoas interessadas e sobretudo, todos muito atentos. Duas partes sem direito a folego para a executante. O programa tocado com muita carga emocional, deixando o público absorvido.
É um exercício curioso, esquecer a folha de sala e ouvir o som do piano e procurar identificar o compositor. Para os mais melómanos torna-se fácil, para alguns é um exercício de memória, em que boas recordações trazem vibrações afetivas e muito pessoais. No geral, a plateia deliciou-se ao ouvir o som produzido pela executante, pouco importada com qualquer conhecimento prévio do repertório proposto. O importante naquela noite era ouvir a pianista. Escutar a sua interpretação, observar as mãos a transmitirem energia às teclas e sentir os acordes a ecoar pelo auditório.
Um renovado desafio, proposto pela instrumentista e como sempre superado.
Havia igualmente o sentimento de agradecimento a Nelly Santos Leite. Pela sua carreira de interprete, claro está, mas também pela sua ação como professora, como diretora da academia de São João da Madeira, como pedagoga e como orientadora para muitos músicos, que em jovens se cruzaram com ela e receberam o devido incentivo para prosseguir os seus estudos, específicos, na área da música, concretizando muitos deles o seu sonho e tornando-se profissionais.
No final do recital, a estranha sensação de que todos os aplausos são poucos.
Falta a cidade organizar uma sentida homenagem.
Um evento com dimensão apropriada, focado no piano e na sua capacidade para se enquadrar em vários géneros musicais, que não importa aqui enunciar.
Um festival de piano, para completar as organizações promocionais da Academia de Música, seria uma ótima forma de demonstrar o reconhecimento de São João da Madeira a Nelly Santos Leite, pelo seu contributo para a difusão do conceito de pianista e pela sua capacidade entusiástica de garantir o acesso à arte, ajudando à democratização na formação de músicos, ao longo de várias décadas.

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