Este é mais um exercício apelando à memória. Nem se trata de esforço, como costumo dizer: a vida é feita de marcos. Este é um daqueles marcos que por vezes é necessário proceder à sua limpeza, porque apesar de, na sua essência poder ter sido uma pequena tragédia, foi também uma lição, daquelas que nos ensina de que não devemos ter comportamentos idênticos.
Vou transportar-vos para os anos cinquenta do século passado. Primeira classe da escola primária. S. Sebastião, Santo António dos Olivais. A casa da minha família... Na sala havia uma mesa, onde um candeeiro a petróleo tentava iluminar o ambiente já por si sombrio, e lá estava eu, o meu pai e a minha avó paterna que estava a costurar. A minha mãe estava hospitalizada no hospital da Universidade... À minha frente o livro de leitura. Já tínhamos passado aqueles exercícios de juntar vogais. Na página, recordo-me bem, tinha a figura de uma mãe que tinha acabado de deitar o seu bebé no berço. O meu pai, armado em pedagogo, pediu-me... não, exigiu, que eu lesse o texto dessa página. E, lá comecei... a coisa até estava a correr bem. Eis , quando ao chegar a uma palavra, e que ao recordar hoje, devem-na lá ter posto exatamente para eu me espalhar. A palavra em causa era surdo, só que , sem razão aparente, eu dizia urso. O meu pai mandava-me repetir a leitura, e repetidamente eu trocava a palavra, dizia urso em vez da palavra que lá estava que era surdo. Tudo isto, para qualquer pai dos dias de hoje. até poda ser um motivo de diversão. Acontece que o meu pai não estava nada para diversões e partiu para a violência. E, sempre que a palavra era trocada, caía na minha cabeça uma das seus mãos, que mais pareciam marteladas. Fui resistindo ao choro, a minha avó, impávida e serena, nem uma palavra em meu socorro. Devia pensar “ o meu filho sabe mesmo educar”. Ganhei pelo cansaço do meu pai. No outro dia, fui visitar a minha mãe ao hospital e levei o livro. Claro, que médicos, enfermeiros e, principalmente a minha mãe, logo se aperceberam do que tinha acontecido, pois bastava olhar para as marcas no meu rosto. Nesse dia saí do hospital como sendo o miúdo de sete anos que melhor sabia ler. Nessa noite, o mesmo cenário, eu, o meu pai e a minha avó iluminados pelo mesmo candeeiro a petróleo. O meu pai abriu o livro na página do dia anterior... li o texto de fio a pavio. O meu pai foi desfolhando o livro e pedia-me para ler. Não falhei, não houve troca de palavras. Quem falhou foi mesmo o meu pai, pois em vez do respeito que lhe devia, instalou-se o medo. A partir daquele dia afastamo-nos irreversivelmente. Eu perdi, mas penso que ele perdeu mais. Eu ganhei uma lição para a vida: ninguém pode ensinar ninguém através do medo. Ensinar chama-se pedagogia e quem ensina tem de ser um bom pedagogo. E, já agora, qual é a avaria de um pai agredir um filho?
Na música, Anat Cohen – Quartetinho – Live from jazz St. Louis.
Nos livros, “Palavras cínicas”, de Albino Forjaz de Sampaio.
Uns dias surdos, noutros ursos. Qual é o problema?