Em 1921, “festa íntima” era aquilo a que hoje se chama “despedida de solteiro”. O título despertou a nossa curiosidade, numa das muitas visitas que fizemos à Biblioteca Municipal do Porto, para consulta de periódicos da Feira e de Oliveira de Azeméis que publicavam, com alguma regularidade, notícias sobre S. João da Madeira, antes de ter sido criado O REGIONAL.
O semanário “A Opinião”, da sede do concelho a que pertencíamos então, dedicava boa parte do espaço disponibilizado pelas habituais quatro páginas do jornal à divulgação de notícias das freguesias oliveirenses, na rubrica intitulada “Marco Postal”. S. João da Madeira, por norma, ocupava o maior quinhão.
Na edição de 11 de dezembro de 1921, assim aconteceu. A reportagem da tal “festa íntima” teve lugar de destaque na correspondência enviada por “Liró” – pseudónimo de João de Oliveira Ramos – um dos “rapazes com o sangue a estuar nas veias”, fundador d’O REGIONAL que, daí a um mês, haveria de chegar, pela primeira vez, às mãos dos sanjoanenses.
“Festa íntima” era então o título da peça que começava assim: “No passado dia 3 ofereceu o nosso amigo António de Lima Corrêa, em Arrifana, uma lauta e saborosa ceia, marcando assim com esta festa o terminus da sua vida de solteiro. Os convidados começaram o sacrifício das penósas, por volta das 9 horas da noite, no meio da mais comunicativa alegria, trocando-se a cada instante pilherias de elevado chiste e muita graça.”
O “rapaz” António de Lima Correia, então com 23 anos, ia casar dali a dias com Maria Soares da Silva, filha do conceituado industrial Quintino José da Silva, e tinha convidado para a sua “festa íntima” os outros “rapazes” que com ele estavam a fundar O REGIONAL, a saber, Manuel Luís Leite Júnior, Serafim Ferreira dos Santos, João de Oliveira Ramos, Ramiro Leão, Cirilo de Azevedo, José Augusto Couto e os irmãos José e João da Silva Correia, primos do anfitrião. Para muitos dos outros convidados presentes, o anúncio feito por Leite Júnior durante o período das alocuções terá sido recebido, simultaneamente, com surpresa e enorme regozijo: “Manuel L. Leite Junior alongou-se num improviso cheio de colorido, apreciando António Correia pelas suas qualidades morais, dotes de instrução e inteligencia. Que saudava nele, tambem um amigo devotado da sua terra, como agora mesmo o provava, trabalhando afincadamente pela fundação dum jornal em S. João da Madeira.”
O ciclo das saudações foi fechado por João da Silva Correia. “Liró” resumiu assim a intervenção do jovem escritor: “Os rapazes ali reunidos – disse – vinham despedir-se de mais um que abalava deste convívio de aventura e de sonhos, que é a mocidade, para consagrar-se inteiramente á religião da família pelo vínculo sagrado da mulher (…).”
António de Lima Correia agradeceu “extremamente comovido” as saudações que lhe foram dirigidas e terminou a sua alocução com a declamação de um soneto de Manuel da Fonseca (*), “poesia de fino sentimento e transcendente saudade”.
A festa prolongou-se pela noite dentro. De regresso a casa, “todos convieram em que a estrada que ligava Arrifana a S. João da Madeira padece actualmente de um ataque de sífilis em ultimo grau, com grandes manifestações de changuentas, tendo de sêr sujeita a um rigoroso tratamento de mercurio cascalhal, para poder ser vadeada a pé enxuto, em noite de ceia e alegria.”
O casamento de António Lima Correia com Maria Soares da Silva realizou-se a 8 de dezembro de 1921, na igreja de Santo Ildefonso, do Porto, bem longe do olhar crítico daqueles que, à época, não aceitavam que a noiva se apresentasse grávida diante do altar. A cerimónia teve, por isso, “um caracter íntimo, tendo assistido apenas pessoas de família”, como referiu “Liró” em “A Opinião”.
A 1 de janeiro de 1922, surge O REGIONAL. António de Lima Correia é o diretor do novo jornal, Serafim Ferreira dos Santos, redator e editor, Manuel Luís Leite Júnior, administrador.
Na edição de 16 de julho de 1922, O Regional vestiu-se de luto para anunciar a morte da esposa do seu diretor. Maria Soares da Silva Correia faleceu na tarde do dia 12 de dezembro, vitimada por uma infeção intestinal surgida no puerpério. Tinha vinte anos de idade.
(*) O poeta Manuel da Fonseca referido na notícia da “festa íntima”, publicada no semanário “A Opinião”, não é o Manuel da Fonseca, vulto destacado do Neorrealismo, que, curiosamente, trabalhou nos escritórios da Oliva, na década de 1940. Em 1921, este escritor/poeta tinha apenas 10 anos.