Opinião

Por alguma se tem de amar a terra...

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O conde Garcia não era um homem particularmente misterioso ou aventureiro. As suas viagens transatlânticas eram, quase sempre, previsíveis. A penúltima, por exemplo, ocorrida no verão de 1933, teria um plano quase inalterado na última travessia. Depois de passarem o Atlântico a bordo do ‘Cap Arcona’, o conde, a mulher e as filhas tinham desembarcado em Lisboa no dia 19 de junho. Alguns patrícios, vindos de S. João da Madeira, esperavam a família no cais: Manuel Leite da Silva Garcia e Elias Correia da Silva e as respetivas mulheres; e ainda outros três, que residiam na capital, Serafim Leite, Renato Araújo e Augusto Palmares. Repetiu-se a viagem de automóvel de 1938. A escolta voltou a parar em Albergaria, para troca de cumprimentos e abraços efusivos, com o fotógrafo de serviço a aproveitar posições oportunas para bater algumas chapas. A seguir, uma longa fila de carros, vinte e três, entrou em S. João da Madeira. Na curva dos Fundões, surgiu o primeiro automóvel. Os foguetes subiram ao alto quando o conde parou junto ao parque do ‘Monte do Peão’, o mais recente encanto de S. João. Serafim Leite haveria de recordar ao conde a sua chegada ao local, uma certa manhã de verão, vindo o jesuíta de Viseu. Leite lembrava-se bem da surpresa dos passageiros da camioneta quando depararam com a construção do parque dos ‘Milagres’. Um dia, o nosso mais proeminente padre escreveria sobre a linha por onde se estendia a nossa terra, num plano de norte para sul: a entrada pelo setentrião, uma ‘impressão de trabalho’, com fábricas e chaminés como as de Júnior; e a do sul, um ‘desdobrar de beleza’, com a ‘Senhora dos Milagres’. Eram esses, caro conde a quem muitos de nós, os pés descalços, deviam sempre alguma coisa, os dois polos nem sempre compatíveis de S. João: o trabalho e a beleza.
Comecemos por dar de barato: o conde sabia que a ele muito era devido, a par de outros patrícios amantes da natureza, aquele milagre. Serafim Leite estava então convencido da miragem: ‘a formusura da natureza está a ser valorizada pelo trabalho – e para o trabalho’. Com as árvores plantadas naquele monte, fecundando a colina dos milagres, como podiam os nossos concidadãos desconfiar do futuro? O conde voltava ali, vindo do Brasil, onde as brisas que sopravam a árvore das patacas eram puras e balsâmicas. O nosso didático jesuíta conhecia gente que queria e nada podia fazer; e gente que podia, mas pouco, quase nada, queria fazer. E havia ainda aqueles, virtuosos como o nosso conde, que usavam a benemerência como um título de filiação, que podiam e queriam fazer quase tudo. O dinheiro do conde nunca fora uma trivialidade. Na sua gratidão, que elevava os corações em ‘hossanas de alegria’ por mais uma visita de Garcia, os nossos concidadãos associavam-no ao maior dos ‘bairristas’, que valorizava sempre a sua terra natal sobre as dos outros. Já vimos a propósito de Júnior, par de Garcia, que havia quem elevasse alguns ‘bairristas’ a um lanço de melhor qualidade: o de um ‘patriota’. Era o caso de Bento Carqueja. Nas circunstâncias do nosso conde, o patriotismo redobrava de brilho, porque, como escreveu o dono d’ ‘O Comércio do Porto’, incidia ‘num patriota exímio que tem sabido honrar a terra que lhe foi berço e que se orgulha de o contar no número dos seus filhos mais ilustres e mais dedicados’. As curvas podiam ser irregulares, mas a terra de origem continuava a esperar muita coisa do conde. Garcia era uma epifania: a de quem podia e queria. Inesgotável era, pois, a extensa bica das suas benemerências aqui e no outro lado do mar, perpetuando o seu nome, exaltado de glória, junto das futuras gerações.
O ‘bairrista’ empinava-se ‘patriota’. O conde era um dos protótipos do homem bom e virtuoso, o inverso do egoísta: era aquele que aplicava o seu dinheiro em projetos, como os do parque dos ‘Milagres’, para proveito de toda a comunidade. Um poeta nativo tinha escrito que Garcia ‘nasceu propenso ao Bem’. Numa década, o conde contemplara a sua terra natal com cerca de setecentos contos. O padre António Ferreira da Costa fez a distribuição minuciosa: trezentos contos nas escolas; mais de duzentos no hospital e instituições anexas, com o compromisso de, todos os anos, subsidiar o seu cofre para sustentar o asilo dos velhos e manter o banco hospitalar, onde os pobres recebiam remédios e consultas gratuitos; cada ano, através de Leite Garcia e Elias Correia, cerca de quinze contos como esmolas para os pobres e mendigos da terra; três para a corporação dos bombeiros e dez para a banda de música; somas importantes para a igreja paroquial, sustentando uma capelania dominical, para os monumentos ao Dr. Maciel e para os mortos da grande guerra; por fim, cinquenta contos para o parque e capela dos ‘Milagres’. Sincero até à obstinação, o padre admirava o talento e os sentimentos de quem passara do berço humilde à fortuna corpulenta, com paixão, quase sempre como um diligente administrador dos proveitos que a providência divina lhe confiara.

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