As misérias sociais. Habitações indignas, a sua imundície, mendicidade, alcoolismo, eis a trilogia que atormentava os corações mais impressionáveis e sensíveis. Minoria venerada, o que havia de melhor na sociedade, a elite local tinha aprendido a ritualizar o amparo aos conterrâneos mais pobres, desvalidos e desgraçados. Eram quase todos sóbrios e discretos nas suas origens familiares: Luís Ribeiro, Albino Correia, António Garcia, Oliveira Júnior, para referir alguns dos mais respeitados. Pouco numerosos, apoiados uns nos outros, fizeram-se todos à vida, quase sempre no outro lado do mar. Enriqueceram muito, mas não desprezaram a procedência. Filho de agricultores sem grandes presunções, o dinheiro que ganhou na cidade de Rosário, na Argentina, permitiu a Luís legar a sua casa, na ´Estrada´, ao hospital da Misericórdia. Os pais de Albino, da casa do ´Nicho´, eram comerciantes remediados; aos doze anos, o filho percebeu prematuramente que o melhor era apanhar um barco na barra do Douro e estabelecer-se no Rio de Janeiro. Confeitarias, lojas de ferragens e de tintas e outros negócios trouxeram a abastança a Albino. Começou um novo modo de viver.
Dos quatro homens, o único que não atravessou o mar foi o mais novo, Oliveira Júnior. Já António tinha deixado Carquejido para rumar ao Brasil em busca de fortuna. Conde em 1928, por vontade de Pio IX, António foi o mais adulado e acarinhado dos beneméritos locais. Agilizou a caridade, transformando a sua bolsa numa longa e exuberante lista de donativos, desde o ´Parque da Nossa Senhora dos Milagres´, com algumas dezenas de contos distribuídas, ao campo de jogos da ´Associação Desportiva Sanjoanense´. Esmolas para os pobres, quanto baste. Quando no verão de 1933, acompanhado pela mulher e pelas filhas, António voltou à terra natal, S. João da Madeira festejou com grande alegria a sua chegada. Os corações nativos estavam tão reconhecidos que ´O Regional´ dedicou toda a primeira página do seu número trezentos a venerar o “conde bairrista”. Por baixo de uma fotografia, um incenso de gratidão ao ´brasileiro altruísta´, porque “é inexaurível a copiosa fonte das suas benemerências que hão de perpetuar o seu nome, nimbado de glória, através das futuras gerações da nossa terra!” Bento Carqueja, o dono d’ ´O Comércio do Porto´, também se juntou à homenagem ao conde. Com uma fina e subtil discordância, que só engrandecia o nosso grande homem: mais do que um ´bairrista´, António era um ´patriota´. O filho de Manuel Garcia e de Maria Margarida Rosa era, sem dúvida, um “patriota exímio que tem sabido honrar a sua Pátria em terra estranha e tem engrandecido a terra que lhe foi berço e que se orgulha de o contar no número dos seus filhos mais ilustres e mais dedicados”. Em resumo, segundo Belmiro Silva, o melhor protótipo local dos “homens bons e dadivosos”. Quando António morreu, aos oitenta e um anos, foram muitos os que na terra, com lhaneza, choraram na rua a sua morte.
António José era cinco anos mais novo do que o conde Garcia. Foi com o pai, António José de Oliveira, que aprendeu cedo a fazer chapéus. Andou depois pelo Porto, como operário, e consta que se inscreveu no pequenino Partido Socialista de Antero e de Fontana. Voltou depois à terra para ali fazer chapéus de pelo de coelho; voltou para triunfar. Torna-se no maior patrão de S. João da Madeira, o primeiro a introduzir máquinas no fabrico de chapéus, num sistema de produção mais sofisticado, e a provocar a indignação dos velhos chapeleiros, habituados a um longo processo de aprendizagem da profissão. Calcanhar de Aquiles, o rumor sussurrado de que pagava, de modo habitual, salários baixos. Mas eram muitos os que sempre acreditaram no vigor e apego do seu caráter. Na sua honestidade, lisura e, coisa certa, amor ao próximo. Esses encheram-se de júbilo com a sua escolha para primeiro provedor da Misericórdia local. Estava-se em 1922. António José habituou-se então a burilar subscrições pela freguesia para angariar fundos que suportassem despesas ordinárias, como as do futuro hospital de Luiz Ribeiro. E a contar com a magnanimidade da colónia brasileira, onde se destacavam Albino, visconde em 1902, por distinção de D. Carlos, e António, conde em 1928, por graça do bispo de Roma de então. Júnior também seria condecorado, como comendador, em 1929, já em tempo de ditadura militar. Mas foi precisa uma deslocação do governador civil de Aveiro para que se soubesse na terra da distinção. Alguém terá pedido então uma comenda para Júnior, o que forçou o nosso industrial a revelar que já recebera o galardão de ´Mérito Industrial e Agrícola há alguns meses. Aos incomparáveis gestos de caridade, Oliveira Júnior juntava uma tremenda sobriedade e discrição. Um homem com nome escrito só em maiúsculas.
Muitos acreditavam que o nosso conterrâneo nunca se venderia, numa fração de segundo, às tentações do amor próprio. Ninguém conseguia discernir a mais pequena sombra de egoísmo naquele homem. Ninguém, quase ninguém, tinha a mínima dúvida a respeito deste homem. Para, em suma, se lhe apetecesse, tornar-se alguém diferente. O ar era o de um homem habituado a trabalhar e a servir. Havia quem se lembrasse de o ver, de porta em porta, a pedir esmolas, com insistência e bons resultados, para os pobres da terra e para a Santa Casa da Misericórdia. Ou, com o flagelo da grande guerra e a falta de meios de subsistência, a abrir os portões da sua fábrica para distribuir por muitas famílias rações de milho. Sempre de chapéu na cabeça, a sua postura raramente mudara. Era rico, às vezes acusado de pagar salários baixos, mas todos sentiam simpatia por o ver dar importância aos pobres, aos que viviam o infortúnio, a miséria e as privações, a desventura... De operário a patrão, Oliveira Júnior passou a dominar o sistema. O facto é que, com a sua ousadia, estava a sair-se bem. Muitos conterrâneos andavam a tentar descobrir o segredo do seu sucesso, desconfiados por não revelar um minucioso interesse em julgar os outros. Ia seguindo o seu caminho, à míngua, dissimulado, ainda que isso não implicasse ficar desprovido de uma animadora noção da escala da sua popularidade. Se havia alguma coisa especial naquele rosto, não tenham dúvidas, era a serenidade, o sangue frio, a probidade de sentir estar a cumprir um dever. De não sumir, para se instalar noutro lugar. A sonhar um mundo melhor?
Quando António José morreu, em finais de janeiro de 1935, na manhã da última segunda feira do mês, os sinos dobraram muito tempo na sua terra. A notícia do finamento correu célere, de boca em boca. Incrédulos uns, estarrecidos e mudos outros. Era um abalo para a terra, um dobre inconsciente e volúvel – estamos a seguir alguns dos seus admiradores – a trespassar sem piedade o asilo dos pobres e o hospital dos doentes. João Correia falou de uma balada de tristeza, de uma morte lançada ao infinito. Fazia muito frio, uma manhã de gelo. Alguns dias antes da sua morte, numa manhã também fria, alguém se lembrou de ter avistado, junto à sua casa, encostadas à parede, uma série de criaturas andrajosas, quase todas mulheres apertando os filhos contra o peito. O nosso zeloso observador deparou então, lá adiante, de cabeça baixa, caminhando vagarosamente, com o bom velhinho. Mesmo que a culpa fosse mútua, era a sua vida, a de alguém que regia a existência soturna, sem alegria, daquelas mulheres. Elas esperavam que ele falasse, com as mãos nos bolsos, uma declaração sumária, mas vigorosa. Acreditavam elas que Deus conhecia bem o lugar que António José merecia? O dinheiro não o precipitou na queda. Do bolso pródigo saiu a esmola graciosa, das mulheres levantou-se um murmúrio de rezas, crendices, em súplica. Era assim a vida quase todos os dias para o bom velhinho, sem fantasias aldrabonas, lamechices, e com palavras aparentemente serenas. Essa era a sua própria história. A de um semeador de bondades.