Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

• Favoritos: 45


A proverbial generosidade da condessa Libânia, a dona da Gandarinha, tinha os seus émulos queridos e venerados na terra ao lado. Rodeada de mil crianças, ainda que pudesse ter pouca saúde, ninguém conseguia ver a condessa empilhada num monte de pó. Não estando a condessa sozinha ou em silêncio, ei-la cheia de farinha e óleo, à volta do fogão, como era costume acontecer com as mulheres do seu tempo. De avental à cintura, Libânia não era um papel velho, aldrabado e mentiroso, como o não eram todos os que se tinham preparado para dar ao mundo uma lição altiva de altruísmo e redenção. A partir de uma certa altura da sua vida, todas as figuras generosas daquele tempo perderam as expressões de embaraço. Numa versão simples e singela, todas elas tinham subido a pulso os degraus mínimos da existência. Por isso, apesar de alguma inveja, os seus conterrâneos aprenderam a pouco e pouco a gostar delas; quase todos admitiam que o seu estilo de vida era exemplar, único e, em última análise, admirável. Mas repetível. No caso da terra dos chapeleiros, os mais conhecidos altruístas eram rostos familiares, reconhecidos pelos jornais da terra, distinguidos por um título que, dado ou comprado, era às vezes egoísta. As suas caras, com os seus bigodes exagerados, as suas maçãs vermelhas, apareciam com frequência nas primeiras páginas das publicações laudatórias. Nas suas cartas de apresentação, todos eles caminhavam juntos a partir de uma certa altura da vida. Encontramo-los com simpatia na movimentada comunidade brasileira, mas também noutras partes do sul ou do norte americanos. Todos nos lembramos de os ver um dia numa rua movimentada do Rio ou do outro lado do balcão da sua loja comercial; ou, um pouco mais acima, de costas voltadas para os canarinhos, na Baía, ainda por detrás do balcão e das ativas caixas registadoras; ou, se formos persistentes a seguir viagem, numa esquina mais escondida e perdida de Rosário, na Argentina; mas podemos ainda, se quisermos orientar a câmara, subir ao norte, até às terras dos caçadores de baleias para, inesperadamente, deparar com um herói improvável mas concreto.
Os nossos conterrâneos eram quase todos gente para quem o dinheiro deixara de ser vil e desprezível. Para os que deixaram a terra e atravessaram o mar, o dinheiro tinha chegado com parcimónia ao bolso de cada um, deixando de ser um problema mesquinho, febril e criminoso. Era esse o caso de homens como Francisco Ribeiro, um descendente da modesta casa da Estrada, na entrada sul de S. João da Madeira. Como se sabe, Francisco José Luís e Clementina Libânia, a condessa, eram quase da mesma idade. Mas, quando nasceram, não havia ainda sinais luminosos de que poderiam, um dia, pensando com felicidade, caminhar juntos, lado a lado. Francisco tinha nascido em S. João da Madeira, no seio de uma família humilde, de lavradores, no dia 17 de março de 1844. Libânia, quatro anos mais velha, era natural de S. Salvador da Baía, a cidade onde, entre gritos de dor, nasceu no dia 6 de setembro de 1840, filha de um cucujanense emigrado e de uma mãe baiana. No ano do seu nascimento, Almeida Garrett publicou o seu drama D. Filipa de Vilhena, José Estevão fundou um jornal com uma longa história para contar, A Revolução de Setembro. Quatro anos depois da condessa, o filho de António Luís Ribeiro e de Maria Rosa de Jesus nasceu numa pacata aldeia de Portugal. Num ano também ele cheio de acontecimentos memoráveis e frenéticos, a família não se apercebeu do futuro radioso que estava reservado a Francisco. Em todo o caso, 1844, o ano do seu batizado, foi um ano com alguns registos inquietantes. A saber, entre outros, logo a 4 de fevereiro, a malograda revolta de Torres Novas, uma manobra ousada e perdida, em desespero de causa, da esquerda setembrista. No fim da contenda, com os adversários anestesiados, Costa Cabral sentou-se mais tranquilamente no poder. Tinha agora mais tempo para, em nome da saúde pública, pensar nos cemitérios. 1844 foi ainda um ano de esperança para a educação. Em Coimbra, à revelia do centralismo de que acusaram frequentemente um dos manos Cabral, foi criado o Conselho Superior de Instrução Pública, com papel de relevo reservado ao reitor da única universidade do reino; uns meses depois, foi declarada obrigatória a frequência do ensino primário para as crianças dos 7 aos 15 anos, nas terras onde existissem escolas. A bola tinha subido como um foguete; mas, rapidamente, como acontecia com certa frequência num reino considerado velho e com pouca emenda, caiu redonda e esvaziada na terra.

Condessa Libânia

Tendo Libânia e Francisco um ilimitado amor aos pobres, uniu-os um projeto grandioso: a construção de um hospital na terra onde nasceram ou cresceram. Libânia foi a primeira a encontrar o seu botão de ouro. O seu hospital nasceu quase em simultâneo com o asilo da Gandarinha, com quatro enfermeiras a trabalhar esforçadamente numa casa situada no lugar da Igreja. As quatro mulheres eram hospitaleiras da ordem terceira de S. Francisco e, no meio dos aflitos, estavam dispostas a prestar aos pobres de Cucujães serviços gratuitos e salvíficos. Infelizmente, o hospital de Libânia durou pouco tempo. Em 1901, com o embate hostil das vagas anticlericais, o hospital da condessa foi encerrado à força. Em 1901, as memórias de Libânia perderam o tino. São duras as recordações dos factos, sobretudo por causa do estranho rapto de Rosa Calmom. Na altura, a pequena Rosa foi apresentada à opinião pública como um caso surpreendente de negligência e de abuso. Surpreendidos, ficamos a ver uma menina à saída da igreja da Trindade, no Porto. Dizem os mais atentos que, à porta daquela igreja, a filha do cônsul do Brasil tinha uma expressão radiante no rosto. A verdade é que todos, à saída da Trindade, de repente, perderam Rosa de vista. O desaparecimento da rapariga soou como um apito estridente. Quem tinha levado Rosa com aquele apuramento pirata, contra a vontade dos pais, à força bruta, para uma casa religiosa?
Certo dia, Libânia perdeu também as suas quatro dedicadas enfermeiras. Mas os tempos que se seguiram não caíram no esquecimento e no desmazelo. A nossa condessa insistiu em dar comida às crianças e, enquanto rezavam, em auxiliar os seus pais. O sangue escorria-lhe das mãos quando, no vão de umas escadas, encontrou Afonso Costa. Não, a sua obra não era um monte de bosta, como todos sabiam. Ficou a condessa nervosa, mas sem se render ao dióxido de carbono. Libânia tinha perdido o hospital, mas abriu logo a seguir um dispensário. Libânia sabia que, quando se sentasse, não deixaria de ter amigos a quem poderia contar ternas e comoventes histórias de amor à vida e dedicação ao próximo. Que, quando saísse à rua, com a cabeça erguida, orgulhosa, percorrendo as ruas da sua aldeia, encontraria sempre alguém conhecido para desabafar e comover. Para desvendar a crueldade dos tempos. Entre as pessoas que cruzava nos caminhos da aldeia, ei-la, a mãe do professor do Porto que falou tão bem, uma tarde bem passada, numa das festas da árvore da Gandarinha. Naqueles anos, cansada, Libânia receberia em sua casa o bispo António, um ator pouco discreto, que se recusava determinado a que lhe partissem as pernas. Com a bênção de António, que era o desejo de Deus, a casa de Libânia nunca seria demolida. No dia 7 de outubro de 1905, quando recebeu o bispo Barroso, em visita pastoral à sua terra, a condessa voltou a abrir um dos seus cinco corações. Perto de si, a protegê-la, amparando-a com cuidado e delicadeza, andava uma série de anjos conhecidos como muito próximos de S. Vicente de Paulo.
Por aqueles anos, Francisco José Luís continuava a viver em Rosário, na Argentina. Cada vez mais rico, preparava o seu regresso solene à terra natal, a do pai António e da mãe Maria. Em 1910, Francisco voltou à casa onde nascera há mais de meio século. O seu regresso era um incentivo para quem vivia à margem. Francisco partira pobre, com muito interesse pelo dinheiro; Francisco voltara rico, desprendido. Tinha tanto dinheiro que decidiu abrir, na sua terra natal, um hospital. Estamos a vê-lo, depois do 5 de outubro, a entrar na casa da Estrada, pela primeira vez em muitos anos. Rosário era agora uma lembrança detalhada, um pensamento feliz; a casa dos pais uma promessa solene para os pobres e necessitados da terra onde nascera. Francisco continuava sozinho como quando partira, sozinho continuaria até morrer três anos depois de voltar à casa da Estrada. Era outubro de 1913 e, desde janeiro, Afonso Costa andava a reforçar o seu poder. O seu governo, com muita contenção e austeridade, voltara aos saldos positivos nas contas públicas. No seu trono dourado, Afonso Costa conseguira, coisa rara na altura, uma maioria absoluta. Ainda que preocupado em não se afastar do guião, um frisson de excitação indispôs Costa contra uma série de operários e de sindicalistas revoltados com a miséria. Em abril, uns meses antes da morte solitária de Francisco José, o herói da Rotunda, Machado Santos, tentou apear Costa do governo. Por aquela altura, baixando os picos do milagre económico, as rendas das casas andavam pelas ruas da amargura. Alguns monárquicos passavam a vida a assaltar quartéis de Lisboa; uma bomba ou outra explodia, fazendo as suas vítimas, sobretudo entre as crianças. No outono de 1913, no dia 20 de outubro, alquebrado e triste, sem filhos, morreu Francisco José Luís Ribeiro. Nos anos seguintes, a sua terra natal tentou concretizar o seu maior enlevo. Durou dez anos a sua casa, na Estrada, virar um hospital. Aconteceu o caso no primeiro dia do ano de 1923, quase dois anos depois de enterrada, em Cucujães, uma das almas gémeas de Francisco.

45 Recomendações
90 visualizações
bookmark icon