Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Afonso Costa, um poço de energia este beirão nascido a 6 de março de 1871, em Seia. Um homem sempre em brasas. Um dia, atribuíram-lhe uma frase tola, do género de ser capaz de, em duas gerações, acabar com o catolicismo em Portugal. Leis como as do divórcio ou da família valeram-lhe a alcunha de mata-frades, que já tinha sido a de Joaquim António de Aguiar. O seu lugar era instável, precário. Mas ainda tinha algum tempo disponível, como inquilino legal, para despachar as suas ideias, que os adversários consideravam obtusas e indignas. Presumiam que a maioria dessas ideias eram uma irresponsável ilusão impulsiva. Um limite desfocado à paciência. Uma prova da insensatez excessiva de um idólatra vindo da montanha. Ideias precárias, sem raios de filosofia, sub-reptícias, havendo, acreditavam os seus antagonistas, tempo suficiente para as contornar e derrotar.
Bem podia o Doutor Costa por em lista de espera as convicções dos católicos portugueses, transtornando as suas vidas, enfurecendo-os. Tendo o combate pintura a mais, sigamos um pouco a resistência obstinada a festas como as da árvore.
Que benefícios e promessas trariam uma festa vegetal como a da árvore para um católico convencido da volubilidade de um tal culto? Em S. João da Madeira ou no Seixal, na Covilhã ou em Guimarães, a festa da árvore era uma festa de crianças, simpática e colorida, mas nem todos conseguiam sentir-se aliciados por um acontecimento organizado impunemente pela Maçonaria. Podia um católico sincero e fervoroso colaborar, com os seus filhos, numa festa ateia?

Leis como as do divórcio ou da família valeram-lhe a alcunha de mata-frades

Leia-se, no ano de 1914, num jornal da Covilhã, a sugestão para que, numa festa daquele género, os católicos saíssem sem pena de cena. Arregimentem os filhos dos livres pensadores – gritava-se. No sopé da serra como, num trilho familiar, devia ocorrer pelo resto do país honesto. Em qualquer circunstância, valia a pena manter a ordem natural das coisas. Para a redação do jornal A Democracia, a festa da árvore, podendo ser em si uma festa simpática e proveitosa à educação das crianças, está sendo nesta malfadada terra portuguesa explorada pelo sectarismo maçónico que lhe manda imprimir a feição panteísta e genuinamente pagã.
Não obstante a sedução aparente, o preço a pagar era excessivo: Como portugueses e como católicos que nos prezamos de ser aqui deixamos consignado desde já́ o nosso mais veemente protesto contra o abuso que se está fazendo da liberdade de consciência, forcando milhares e milhares de crianças, na sua quase totalidade filhas de pais católicos e elas próprias católicas a enfileirarem numa festa mais do que pagã. Uma festa como a da árvore servia as más intenções dos livres pensadores, pelo que forçar os filhos dos católicos a comparecer nelas é uma violência sem nome. Podemos admitir uma irritante incompreensão entre alguns católicos de S. João da Madeira e a putativa presença dos seus filhos no carro alegórico de Quintães Braga. Cansados de respostas evasivas, havia certamente pais que não se queriam submeter ao verídico opaco da narrativa republicana. Mas mesmo que o grito de dor não fosse exagerado, a guerra contra o ateísmo era para manter. Numa festa como a da árvore republicana, todas as árvores plantadas pelas crianças das escolas deviam ser arrancadas e lançadas a terra pelos que teimavam em ver na Festa da Árvore um culto pagão e não um culto de civismo. No caótico ano de 1914, A Democracia, da Covilhã, lamentava o espetáculo que certos católicos enfileirados ao lado de pessoas reconhecida e notoriamente inimigas da Igreja levassem o seu zelo por uma causa tão infeliz até ao ponto de subscreverem à carta circular que foi profusamente espalhada pela cidade. Mas o mal, que para alguns só podia gerar o mal, também podia ser enganador. Para alguns católicos mais tolerantes, era natural sentir a utilidade, a benéfica influência na educação infantil e até no espírito do povo, de festas como a festa da árvore.
Ao contrário do pessimista jornal da Covilhã, era assim que pensava o Jornal de Guimarães. Uma criança a crescer precisava de bons exemplos. Nem todos acreditavam na solução dos bandos escuros, reacionários, que gostavam de mandar arrancar, cortar ou lançar por terra as árvores plantadas. Como se escreveu naquele jornal em 1914, a história do culto da árvore andava mal contada: as amigas e benfazejas árvores que os batalhões infantis alegre e festivamente plantaram aos olhos de uma multidão comovida e contente que nem por isso a festa querida deixará de realizar-se, aqui e em todo o pais, numa apoteose de luz, de amor e de verdade! Era aqui que residia uma escolha que, sem padres à mistura e sem liturgia romana, devia ser livre: Que mal encerra dizer à criança que deve amar a terra, que deve fertilizá-la pelo seu esforço, que deve ungi-la com a graça dos seus hinos e cânticos? Um padre ou uma missa, por mais amorosos que fossem, não impossibilitavam a autonomia nem a força criadora da natureza. Um padre e uma missa eram coisa necessária para que a árvore crie raízes, cresça, lance a ramagem, frutos e flores? Dito de outra maneira, uma festa como a festa da árvore, aprendendo com o exemplo de homens como São Francisco de Assis, não surgiu por especulação retórica. Há muitos séculos, Francisco mostrara como amar a Deus era amar a natureza, as plantas, os animais, os seres mesquinhos, enfim, todas as coisas da criação. Do céu também podiam cair coisas práticas: A festa da árvore teve e tem em vista, não satisfazer simbolismos novos, liturgias novas, mas criar fontes de riqueza.
Em 1914, o susto das alterações climáticas ainda não era um sentimento aterrador. Mas, por mais bravia que fosse, havia quem acreditasse que nenhuma árvore podia ser abandonada, desolada e seca. Na ordem da natureza, a relação com as árvores despertava quase sempre emoções fortes. O desejo, por exemplo, de abraçá-las, de as manter húmidas e protegidas, de as não deixar morrer. Ninguém queria viver rodeado de espaços sem espécies vegetais. Ou sem animais domésticos. Como acontecia em todas as aldeias, havia em S. João da Madeira quem vivesse e convivesse debaixo do mesmo teto com os animais de estimação, os porcos, as galinhas ou os coelhos... Nas estações frias ou quentes, mesmo não indo à escola, quase sempre descalças, com os pés encardidos e com poucas cautelas para as pneumonias, as crianças da terra passavam uma grande parte do seu dia ao ar livre, perto das árvores e dos animais. Livres e selvagens, conheciam moitas e barrocais.
Sinal dos tempos, também viviam perto de algumas fábricas ruidosas e a cheirar mal. Os que não partiam, desconheciam, quase todos, o bulício das cidades, os seus castelos no ar. Contudo, sem pestanejar, havia outras preocupações plangentes a ocupar os seus cérebros desajeitados. Não era preciso prestar muita atenção para lhes explicar minuciosamente a ladainha futura: tratando do ofício, muitas daquelas crianças desocupadas iriam ficar cedo com as unhas negras, enquanto lutavam, mais sopapo menos sopapo, por oito horas de trabalho ou um salário menos ridículo. Com muitas ou poucas árvores para plantar e festejar, com reis ou homens de chapéu de coco a mandar e a deixar no ar promessas por cumprir, a vida continuava dura...

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