Seria longa a existência do conde Garcia, regular e certa como um fio de prumo, aproveitando com temperança cada minuto da sua existência, porque este mundo não dura para sempre. Tinha recebido quase tudo dos seus concidadãos, sentimentos elevados, generosidade, reconhecimento, gratidão. Todos os anos, no dia dois de abril, eram muitos os nossos conterrâneos que lhe mandavam telegramas a desejar uma longa vida e a melhor saúde. António tinha nascido há muitos anos, numa primavera policrómica. Um dia de outono, passados os oitenta, achou-se mal. O estado do enfermo foi piorando. Era um dos últimos dias do mês de outubro, o mundo andava em guerra e Salazar entretido com o inferno dos outros, a neutralidade tartufista, as festas dos dois centenários... Era vinte e nove de outubro de 1940, António morria longe, quando caiam as folhas amarelecidas na nossa terra, o seu berço. A notícia brutal e confrangedora chegou aqui depressa, através do telefone e dos fios telegráficos. Dizê-lo, de boca em boca, tornou-se quase uma homilia: que a terra lhe fosse leve... O corpo de António foi sepultado no cemitério de São João Baptista, na Praia Vermelha. Anos mais tarde, quando chegávamos ao Rio, sentíamo-nos ponderosos junto ao túmulo do ‘cordeiro de Deus’, chamado por Deus à sua santa glória. E como a piedade ainda era para muitos de nós o seu maior legado, as nossas vénias a um homem bondoso e bem-intencionado eram suaves e ternas. O dobre de finados era um lenitivo e uma esperança: continuávamos a acreditar que, naquele outono de 1940, o nosso conde tinha chegado ao céu com a leveza de um balão. Ou de um passarinho.
Em novembro de 1940, nas leituras do hebdomadário, retivemos as palavras de João da Silva Correia em louvor do vulto primacial da nossa terra. António morrera aos oitenta e um anos, os nossos conterrâneos estavam de luto por ele, mas a sua alma ficara ‘a sobrepujar o espaço entre o céu, que é de Deus, e a terra, que é de Deus e dos homens’. Era a sina de um homem que trabalhou, produziu e soube elevar-se sem se deixar entontecer pela vertigem dos picos da abastança ou da exibição vaidosa. Serafim Leite costumava dizer que a morte de António, depois da algidez fúnebre de Luís Ribeiro e de Oliveira Júnior, era a derradeira cerimónia fúnebre da nossa ‘trindade bendita’. Foi o nosso sacerdote mais viajado e universalista quem melhor chamou a atenção para a devoção de António: ‘A piedade do Conde Dias Garcia era profunda. Rezava e praticava. Não era fachada, era vida. E a vida traduz-se em atos externos’. António tinha aprendido a fazer fortuna e soubera usar essa fortuna com desprendimento: ‘partiu do nada para chegar ao tudo’. Num tempo de desorientação religiosa, aquele homem afável nunca medira a distância social e sempre soubera encontrar mil maneiras diferentes de praticar o bem. ‘Fê-lo com a bolsa aberta’, escreveu o jesuíta, um ‘bairrista ao dar e ao amar’. O conde nunca soçobrou, resistiu às modas pedantes, convertendo as moedas do seu imenso tesouro em luz, conforto e remédio para as escolas, as creches e os hospitais deste lado e de lá. Fora, em todas as circunstâncias e lugares, um bairrista exemplar, não contendo o seu amor à terra ‘apenas ao horizonte do seu próprio campanário’. Alquebrado e velho, o conde seria ad aeternum um modelo para os rapazes mais fiáveis dos nossos dias.
A terra era leve, a ascensão suave e branda, mas a notícia da morte do conde, rude, abrupta, violenta, deixou-nos de luto pesado durante muito tempo. Tivemos notícias do seu funeral e das quinhentas coroas depositadas junto ao seu ataúde. Na igreja da Candelária, a missa do sétimo dia teve uma extraordinária e notável assistência. Por cá, no dia 4 de novembro, crucifixos nas mãos, foram celebradas missas na igreja matriz em sufrágio da alma do conde, findas as quais houve ofícios. Todas cheias com gente de todas as categorias sociais, incluindo os rapazes e as raparigas da ‘Mocidade Portuguesa’ que frequentavam o ‘Colégio Castilho’. Durante dias, a bandeira esteve a meia haste nos principais edifícios, na câmara municipal, na ‘Legião Portuguesa’, no colégio, nos bombeiros, na ‘Santa Casa’, nas escolas... A estátua em bronze de António, colocada na praça Conde Dias Garcia, foi envolta em crepes, com a base cheia de ramos de flores. Os sobrinhos, Manuel Leite da Silva Garcia e a mulher, abriram o seu palacete para receber as condolências pessoais de alguns ilustres da terra. Manuel recebeu centenas de telegramas, de cartas e de cartões repletos de pêsames sinceros. Uma dessas cartas seria publicada no jornal da terra. Era de António Correia de Oliveira, que conhecera o conde no Rio de Janeiro. O poeta, indicado para o Prémio Nobel da Literatura em 1933, nunca esqueceu a ‘sua solicitude, o seu quase paternal carinho para o hóspede de acaso que eu era, - mas para mim o alto e venturoso acaso’. E atirava o conde para a posteridade, na sua ‘linda e insinuante figura de velho – destas que bem ensinam aos moços de hoje’.