Foi o ‘talent de bien faire’ que arrastou Garcia de comendador a conde, por graça de Pio XI, o 259. º bispo de Roma e o primeiro soberano do estado da cidade do Vaticano. Por cá, com tantas obras piedosas e recreativas – do hospital, das escolas e do campo de jogos da ‘ADS’ ao frondoso parque dos ‘Milagres´ – António transformou-se numa das maiores glórias da terra, a seiva vivificante do amor ao próximo. Era aquele que, absorto na transparência das suas ações, do alto da sua opulência rejeitara o egoísmo sórdido e enxergara, com limpidez, três pontos luminosos: o da caridade, o da instrução e o da religião. A caridade praticada no hospital e no banco hospitalar, instituições benéficas a um meio social como o nosso, onde abundava a classe operária, geralmente pobre, sem recursos para debelar as suas enfermidades físicas e morais. A instrução também, sobretudo a mais primária, auxiliando a ação dos governos a ampliar as escolas oficiais e as suas cantinas – criando mesmo uma escola com o seu nome. Um nosso conterrâneo resumiu bem esta crença do conde: era ‘pela educação do espírito que os homens mais valem, e mais úteis podem ser no meio social a que pertencem’. Finalmente, a religião de um crente digno e sincero: foi esse sentimento que, voltando ao nosso conterrâneo, ‘perfumou a sua existência’, dando-lhe um coração generoso.
Quando um homem destes voltava à terra, recebíamos-lho com afeto e cuidado, do maior de nós ao mais humilde, do mais pobre ao mais rico, do mais novo ao mais velho. Contam alguns que desconfiávamos da adulação, da latinha de graxa, do dobrar da espinha; que preferíamos a franqueza do trato. Quando o seu carro, num percurso muito vagaroso, chegava à curva dos Fundões saudávamos o conde erguendo os chapéus. A mole de gente era sempre enorme, afogando o carro e forçando a interrupções intermitentes, a começar pela paragem junto ao parque, com os ramos de flores, os foguetes incessantes, as bandas de música e os estandartes das associações, as pombas soltas e uma volta, duas voltas, os nossos vivas arrebatados, mas cordiais. A seguir, vinha a ‘Santa Casa’, o ‘Colégio Castilho’, a aproximação ao palacete dos Garcia. Quem não se recorda da rua Alão de Morais ou da praça de Dias Garcia tão bem ornamentadas de bandeirinhas e de motivos alegóricos, apinhadas de gente; e das crianças das escolas da Quintã ou de Carquejido e dos seus professores a formarem duas compridas alas, por entre as quais passava o automóvel dos condes António e Carolina, seguidos dos demais carros, sempre mais de vinte. Ficávamos impacientes à espera da noite, para vermos o recinto do palacete iluminado à veneziana e dançarmos, até de madrugada, ao som das bandas e do fogo do artifício.
Sabíamos que o conde só no verão ficaria connosco. Mas também sabíamos que, enquanto permanecia entre nós, se enternecia com os nossos improvisos líricos. E sabíamos ainda que o seu mérito e talento eram tão reconhecidos cá como lá, além-mar, onde se tornou surpreendentemente tão rico e tão disposto a ouvir os outros. Foi por indicação do cardeal do Rio de Janeiro, Arcoverde, que o papa do ‘Tratado de Latrão’ lhe concedeu o título de conde em 1928. As benfeitorias de António por lá eram tão consideráveis com as de cá. Um ente aureolado, pois. A mesma cortesia e compaixão, a mesma autodisciplina, o mesmo cavalheirismo, o mesmo sentido apurado do certo e do errado. Constava que era um dos maiores benfeitores da ‘Caixa de Socorros Mútuos D. Pedro V’ e do ‘hospital dos Lázaros’, situado no bairro de São Cristóvão, no Rio. Que dera muito dinheiro para a catedral da cidade, para a ‘irmandade de Nossa Senhora da Candelária’, o ‘dispensário da Irmã Paula’ ou o ‘Asilo da Velhice Desamparada de S. Luís’. Porque nem todos os seus compatriotas tinham conseguido enriquecer no Brasil, como acontecera com ele a partir de uma loja de ferragens, a mão caritativa estendia-se à comunidade lusa: aos ‘portugueses desamparados’; à ‘beneficência portuguesa’; ao ‘repatriamento dos portugueses’. Por ocasião de uma catástrofe natural no Faial, António não se esqueceu das inúmeras vítimas do terrível sismo de 1926. Era grato em muitas irmandades do Rio – a do ‘Carmo’, a de ‘São Bento’, a de ‘São Francisco da Penitência’. Membro da prestigiada ‘Mesa da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de S. Francisco de Paula’, o seu nome era reconhecido no consulado português, onde se habituaram a elogiar os serviços relevantes em favor do legado da pátria, do seu nome, do seu bem-estar e da sua cultura. António parecia ter tempo para tudo, incluindo frequentar metodicamente o ‘Gabinete Português de Leitura’ e o ‘Retiro Literário Português’. Afinal, foi precocemente que o nosso conde apanhou o jeito do brilho e da fama.