Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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O conde Garcia constatava que, por contraste com a terra de adoção, a aldeia onde nascera era recente e pequena. Felizmente, nos últimos tempos, as suas fábricas e oficinas de chapéus e de sapatos, à falta de outro género de pergaminhos, começavam a dar esperanças de que viesse a crescer até se transformar numa urbe gradualmente populosa e progressiva. Sendo, em todas as circunstâncias, uma pessoa ponderada e sem receio de elitismo, o conde tinha a certeza que as coisas andavam bem encaminhadas: que toda a gente estava satisfeita e animada com ele e que se sentia tão bem por cá como por lá, no outro lado do mar. Invadido por um sentimento de gratidão, estava reconhecido à sua gente, na terra natal e na terra de adoção, onde nenhuma das variadas instituições onde era parceiro interessado e dedicado lhe criavam chatices ou sarilhos. Em todo o caso, o conde antevia que podia calhar ser de mau tom esconder a cara. Ao que se sabe, Garcia nunca cortou o bigode, mesmo quando o bigode começou a ficar grisalho e pardacento. Dava-lhe um ar digno, de respeito, venerável, de mando e competência, com um ligeiro tremor quando se comovia com ligeireza. Tendo o tato suficiente para ir mantendo a sua riqueza intacta, o seu alvo não era só fazer negócios com fins lucrativos. A sua mira e intenções, as suas carradas de razão, eram também todas aquelas instituições e refúgios para os pobres, os miseráveis e os desvalidos que não lhe esgotavam a liberalidade. Numa relação permanente entre o cá e o lá.
As suas vindas à terra eram um permanente corrida contra o tempo. Mas sabemos como Garcia era um homem paciente e uma pessoa ponderada. Gostava o nosso conde, à janela do seu palacete, que a noite caísse de mansinho? Tinha tempo de ler o jornal da terra? Tantas páginas para descobrir o ponto de honra de ver um filho da terra a ganhar credibilidade e reputação, o respeito de estranhos, a impor-se aos outros pela sua dignidade, engenho e ação. Não havia terra como a que nos serviu de berço. O conde esperava que alguns dos seus conterrâneos agissem por sua influência, que ficassem enfeitiçados com a sua conduta e maneira de proceder. Naquela tarde de julho, com uma brisa a chegar do mar, contar com algum tempo para pegar no jornal da terra ajudava-o a preservar as suas referências, o seu apego terno à terra. Pausa, assim, depois da azáfama da tarde, para ler com melancolia: ‘Os nossos campos podem ser um brejo, as nossas vinhas e pomares estéreis, as casinhas deselegantes e as ruas tortuosas, que, ainda que haja praças mais majestosas e vilas mais bem-talhadas, esta é a que é para nós a perfeição’. Garcia pactuava, mas queria mais, ambicionava muito mais. Seriam, um dia, as nossas casas, as nossas ruas e praças, as nossas fábricas, as mais perfeitas e elegantes? Quando tinha tempo, o conde afeiçoara-se a descer do seu palacete, com Carolina e as filhas, até ao monumento dos caídos pela pátria e às principais artérias da vila, perto da ‘Praça’ que tinha o nome de Luís Ribeiro, ruas que começavam a cobrir-se de casas menos rústicas e com telhados mais altos e vermelhos, menos simples e humildes que a dos nossos pais e avós.
Meia dúzia de anos antes de morrer, numa passagem por S. João, o conde aproveitou o aniversário das filhas para ajudar a enfeitar na sua terra o parque dos ‘Milagres’, a colina verde reservada para os dias de ócio dos nossos trabalhadores. Ofereceu então sessenta e três árvores e plantas, quarenta delas por Luísa, vinte e três por Carolina. Em maio de 1933, António e Carolina tinham concorrido com mais de vinte contos para os planos de alindamento do ‘Monte do Peão’. Começara então a construção da ponte em pedra sobre um projetado ribeirinho, aquele cursinho de água que um poeta nativo imaginava a correr ‘num murmúrio doce e brando’. Os patrícios receberam com alvoroço a magnanimidade dos condes, a generosidade e o bairrismo de duas belas almas bem formadas, que se identificavam tão irrepreensivelmente a espalhar copiosamente o pundonor do bem. Garcia, que era um homem sempre disposto a ouvir, esperava que outros conterrâneos, sem coerção nem tensão, agissem por sua influência. Em 1933, era necessário recomeçar em força as obras no parque verde, para juntar ao labor da terra a sua lindeza e encanto futuro. A entrada, pelo Orreiro, estava por concluir: era necessário, para circulação dos automóveis e comodidade de quem ali se deslocava a pé, o alargamento de um caminho ainda escalavrado. Que o ‘talent de bien faire’, o repertório patriótico de António e da mulher, fosse, em última instância, imitado e tomado de uma vez por modelo.

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