Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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A entrada do conde em S. João foi apoteótica. Era verão, meados de julho, a hora mais ou menos rigorosa. Por muito tempo, havíamos de nos lembrar da ocorrência. Num passo acautelado, o primeiro lugar onde se parou foi o parque de ‘Nossa Senhora dos Milagres’, onde o automóvel do conde estacionou num tapete verde, viçoso, tratado com mimo. Uma hora concreta para uma mão cheia de pétalas ser lançada sobre o conde, a mulher e as filhas. Fazia calor junto à ‘ponte dos Garcia’, subiram ao ar os foguetes, exteriorização da folia. Primeira paragem antes da segunda, na ‘Santa Casa’, cheia de crianças e de velhos asilados, pessoal das enfermarias e, outra vez, a promessa de muitas flores. Logo a seguir, o quartel dos bombeiros. Os bombeiros com o seu estandarte, perfilados e garbosos, a banda a tocar o hino da terra, muitas flores atiradas ao ar por um grupo de meninas. Que mais dizer dos carros em andamento lento até ao largo 11 de outubro? O conde não queria ser tratado com indulgência. Por mais cansado que estivesse desde que partira de Lisboa. O largo cheirava a transpiração, parecia acanhado, de dimensões exíguas, com o povo comprimido formando uma turba compacta. O conde estava habituado, não se surpreende a ver tantas crianças das escolas, os alunos do colégio Castilho, os trajes típicos do rancho folclórico, o da ‘Laborãnea’. Quase ninguém quis ficar em casa. A ‘Legião’ e a ‘Mocidade Portuguesa’; a ‘Associação Desportiva Sanjoanense’ e o ‘Operário Atlético Sanjoanense’; os sindicatos, corporativos, dos chapeleiros e dos sapateiros; os bombeiros voluntários, naturalmente, ou a ‘Liga dos Combatentes da Grande Guerra’, todos com os seus estandartes. Mais aqueles que tinham ido esperar o conde fora de portas, na reta de Albergaria: os vereadores da câmara municipal; a mesa administrativa da ‘Santa Casa’; a redação do jornal local; a direção dos bombeiros e a comissão do parque; os amigos de Santo António e das festas sebastianinas.
O automóvel do conde estacionou no largo, com os sinos da capela de Santo António a repicarem festivamente, os foguetes a estremecerem no ar. O conde não quis resguardar-se numa bolha estéril. Saiu do automóvel para depor um ramo de flores no ‘Monumento as Mortos da Grande Guerra’, uma homenagem singela aos que tinham morrido pela pátria. Sob o comando do doutor António Ferreira Batista, professor do colégio Castilho, a ‘Legião Portuguesa’ apresentou armas, imprimindo ao ato grande solenidade. Como se esperava, o conde estava à altura da situação. Colocou um ramo de flores e ficou uns momentos meditabundo, orando num impercetível mover de lábios. Quando se voltou para a multidão, com um gesto de agradecimento, o conde foi ovacionado. E que mais, naquela tarde de verão, até chegar ao seu palacete? O bruaá estava ainda para durar. Um longo cortejo seguiu o conde até às portas da ‘casa brasileira’. A entrada nos jardins fez-se a pé, um impressionante desfile de pessoas e coletividades. À noite, houve um concerto no largo fronteiriço. Todos quiseram estar presentes. Entre os convivas, dezoito zeladores e zeladoras que passaram a fazer parte da ‘Comissão do Parque’ e que se comprometiam a velar pelo santuário dos ‘Milagres’. Aqueles zeladores e zeladoras estavam gratos ao benemérito que ajudara à conclusão da empreitada com mais um donativo de dois mil escudos. E também pelos mil escudos para aquisição de mobiliário e material didático para a nova escola do ‘Parque’, pronta em 1938. O homem que, em tempos, mandara construir uma escola junto ao seu palacete e que, anualmente, mandava distribuir prémios em dinheiro pelos alunos com melhor aproveitamento, auxiliava, em 1938, a nova escola com uma verba que chegou aos três mil e quinhentos escudos. A boa vontade do conde era desmedida: a escola do ‘Parque’ passou a dispor de duzentos escudos de dotação para distribuir pelos alunos melhor classificados.


A agenda do conde esteve muito preenchida nas semanas seguintes. Todos os dias, era preciso arranjar tempo. Os convites não abrandavam, eram uma provação. Todos ainda se recordam do frenesim das festas sebastianinas no final do mês de julho, com cinco bandas de música, da do Couto de Cucujães à de Matosinhos, música muito alta a abrilhantar as festas nos dias 30 e 31 de julho e 1 de agosto. Eram os concertos no adro da Igreja e na praça de Luís Ribeiro. Eram os comboios especiais, com os preços reduzidos da ‘Companhia do Vale do Vouga’, que traziam forasteiros até S. João e enchiam com um mar de gente as suas ruas principais. Uns dias antes, a 23 de julho, o professor Batista cruzara-se com o conde e informara-o sobre os primeiros exercícios de campanha da ‘Lança da Legião Portuguesa’ de S. João da Madeira. Num tom de voz monocórdico, sem manifestação de pudor, o professor do Castilho informou o nosso conde de que, naquela tarde de sábado, 23 de julho, legionários da lança sanjoanense iriam acampar no Largo das Airas, nas proximidades das Caldas de S. Jorge. Os dias seguintes seriam de uma verdadeira festa nacionalista, com o acantonamento na quinta de Manuel Cunha Sampaio, um simpatizante ferrenho da ‘Legião’. Não olhando a estorvos e sacrifícios de qualquer espécie, Sampaio tinha cedido o espaço aos legionários, voluntária e gentilmente. O professor do Castilho não se atreveu a convidar o conde para o almoço de domingo, quando seria servido, no meio de um rigoroso serviço de sentinelas, um rancho confecionado, no próprio local, por legionários da ‘Lança’, autênticos profissionais da cozinha. Mas presentes no almoço do dia 24 estariam dois conhecidos do conde: António Henriques, delegado do comando distrital da Legião Portuguesa ao núcleo de S. João da Madeira, futuro presidente da câmara; e Joaquim Milheiro, oficial médico da ‘Legião’ e delegado dos serviços de saúde ao núcleo local.
Na tarde de 14 de agosto, sentado no salão do seu palacete, por entre o fumo do charuto, o conde leu, na primeira página do número 432 d´ ‘O Regional’, as principais ocorrências do acantonamento legionário nas Caldas de S. Jorge. O professor Batista era o repórter no local. Salazar, que, em julho de 1834, em nome do ‘centrismo’ do Estado Novo, rompera com o radicalismo de Rolão Preto e de Alberto Monsaraz e com o seu movimento nacional-sindicalista, abrira finalmente as mãos à ‘Legião’. 1936 seria um ano em cheio para o regime, com Carneiro Pacheco, antigo professor em Coimbra e agora a dar em aulas em Lisboa, a regenerar o sistema educativo enquanto estrutura de reprodução dos valores do Estado Novo. Tinha chegado a altura de criar o ‘Ministério da Educação Nacional’, logo seguido pela ‘Organização Nacional Mocidade Portuguesa’ e pelas ‘Obras das Mães pela Educação Nacional’. A ‘Legião’ também iria nascer em 1936, para ‘formação patriótica de voluntários destinada a organizar a resistência moral da Nação e cooperar na sua defesa contra os inimigos da pátria e da ordem social’. Em 1936, o regime andava a endurecer. Uns meses antes da ‘Legião’, a 23 de abril, para depuração de presos políticos e sociais, abrira a colónia penal do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. A primeira leva de deportados, 157 anarquistas e comunistas, chegaria ao campo a 29 de outubro. Eram tempos de instabilidade externa aqui ao lado, de guinadas à direita e totalitarismos exacerbados, sucediam-se as manifestações na rua de apoio a Salazar. A ‘Legião’, à semelhança de movimentos fascistas congéneres, em Itália e na Alemanha sobretudo, nascia para ajudar a reforçar a natureza nacionalista e totalitária do regime e mobilizar as massas. Uns meses passados, lá estava a ‘Legião’, com a ‘Mocidade’, a substituir o exército domesticado no tradicional desfile do 28 de Maio.
Não temos a certeza se o conde leu toda a reportagem de Batista sobre o acantonamento da ‘lança’ legionária’ sanjoanense nas Caldas ou se conversou sobre o assunto com a mulher e as filhas durante o jantar de domingo, 14 de agosto. O professor do Castilho tinha contado como se entusiasmara noite fora, escutando os brados da ‘sentinela alerta’, que dava às manobras do acampamento um ‘aspeto guerreiro’. Aqueles brados impressionaram todos os que os ouviam e Batista queria permanecer no deslumbramento, experimentar todas as atrações das manobras. O professor andava pessimista e antevia um conflito ‘num amanhã que ninguém pode prever quando nem como’... Sendo assim, em caso de conflito, os voluntários ‘saberão cumprir o seu dever ao serviço da Pátria e das instituições renovadoras do espírito lusíada’. E lembrou um dos exercícios que mais empolgara os legionários. Com uma disciplina impecável, portando-se com garbo na ‘arrojada arte da guerra’, ei-los, às dez horas da manhã, 24 de julho, numa marcha de aproximação; em terrenos apropriados para o efeito, efetuaram um exercício de combate ofensivo. O diretor da instrução, António Ferreira Batista, dirigira superiormente a operação, bem coadjuvado pelos comandantes da ‘lança’, Emídio Gandra e Joaquim de Almeida. Aos restantes componentes da ‘lança’ um agradecimento sincero do repórter de serviço: um por um, com espírito de disciplina e dedicação à causa da restauração nacional, todos tinham sido ciosos no cumprimento do seu dever.

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