Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Sendo tempo de homenagens, ponha-se a massa a levedar. As provas de veneração ao conde António Dias Garcia foram ainda maiores do que as dispensadas a Francisco Luís Ribeiro ou a António José de Oliveira Júnior, os outros dois vértices da tríade que iria preencher com os seus restos mortais o pódio do panteão local. Garcia superava-os, era o modelo do herói determinado e virtuoso. Todas as suas viagens à terra natal eram a confirmação de uma doutrina: a da existência como uma construção ética inspirada pela virtude. O conde tinha muitas histórias bondosas para narrar, contadas por ele ou por outros, vivia cercado por essas narrativas cheias de juízos de valor sobre o bem e o mal, como se estivesse sempre a contá-las numa deificação pomposa e sublime. Foi a ele, enquanto vivo, que o jornal da terra consagrou mais manchetes, páginas e fotografias. Bastaram alguns anos no Rio de Janeiro para poucos se lembrarem das obscuras origens e procedências. Atrás de um balcão, num zénite, com a graça de Deus, um jovem remediado encheu-se de dinheiro. O costume de mandar os filhos para o Brasil resultava, com frequência, num brilharete. De quem herdou o nosso conde a figura e as feições? Fossem do pai ou da mãe, a classe social do conde era agora, com os produtos preciosos das suas lojas no Rio, com a sua aparente brandura, sentido de risco e algum narcisismo, a dos possidentes. Boas histórias nunca lhe faltaram, de coragem, teimosia, resiliência. E de bondade extrema, amor apegado ao torrão natal. Quase parecia uma personagem de ficção, ainda antes de se tornar no primeiro dos mortos do panteão nativo. Os anos iam correndo, quantos anos desde que deixara a terra natal? Apoiado na bengala, o conde foi-se tornando mais comedido, amolecido e brando nos gestos e atitudes. Mas sempre com regalos para os pobres envergonhados, os doentes incuráveis, os humilhados e os miseráveis. E sempre que voltava à terra, à sua casa grande, à Praça, aos cafés – como a pastelaria Rex, recentemente aberta na praça Luís Ribeiro - era um mimo a maneira como todos os seus conterrâneos o recebiam.

Condes
Apoteose na receção dos condes

Dizem que os regressos costumam ser mais felizes do que as partidas. Toda a gente queria a vinda do admirável conde. O conde cheirava a santidade viva, a promessa de mudança cívica para um mundo melhor. Todos queriam estar ao pé do conde. Porque a virtude estava no seu coração e nas suas mãos, nos seus braços abertos, os seus conterrâneos acreditavam nos valores da gratidão. Foi o que aconteceu no verão de 1938, quando o conde, a mulher e as filhas voltaram a S. João da Madeira. Sabe-se como o conde gostava de mudar de ares e, com alguma regularidade, retornava ao seu palacete. Cada torna-viagem da família mais ilustre da vila era um acontecimento de relevo, aguardada antecipadamente com muita ansiedade. ´Vêm aí os senhores condes!’ – anunciava-se na imprensa local o regozijo da hora festiva. José Cerqueira de Vasconcelos, o diretor do Colégio Castilho, aproveitou o entusiasmo da criação, em 1938, do primeiro núcleo da Mocidade Portuguesa no seu colégio, para louvar o regresso do conde. Que se discutisse depois o seu artigo nas mesas e tertúlias dos cafés. Exaltante era o bem que o conde e a condessa praticavam, a sua obediência a nobres impulsos, os seus corações magnânimos e generosos. Segundo Cerqueira, a caridade dos condes altruístas consistia em ‘duas maneiras de assistência à humanidade enferma’: uma, mais vulgar entre as almas caridosas, ajudar a curar o corpo no hospital ou recolher os inválidos no asilo; a outra, menos frequente e usual, preservar a inteligência combatendo a falta de instrução, fortalecer os bons instintos na escola. Rendido ao benfeitor da instrução pública, o professor Cerqueira acreditava que a escola era o meio mais higiénico de preservar as almas da tentação do crime. Para colher moralidades, afetos e esperanças, o nosso conde tinha rompido um preconceito: não se limitou aos pios legados para obras de misericórdia corporais, empregou também com mãos largas o seu ouro na melhoria do ensino público na sua terra natal. Fundou escolas e estabelecimentos públicos de instrução; abriu a bolsa para equipamento e mobiliário, materiais didáticos e prémios aos melhores alunos.
Quando o conde chegou, na tarde do dia 30 de junho a S. João da Madeira, o professor Cerqueira foi um dos muitos concidadãos que se puseram ao pé dele. A viagem de Garcia não era apenas emotiva. Enquanto ilustre e insigne presidente da ‘Federação das Associações Portuguesas no Brasil’, o conde voltava a Portugal para examinar, com o governo de Salazar, a colaboração dos ‘brasileiros’ no duplo centenário da fundação e restauração de Portugal. A 27 de março, Salazar enviara para a imprensa uma nota oficiosa a divulgar, ao país e ao mundo, os objetivos e o primeiro esboço do programa geral das comemorações do duplo centenário (1140-1640). As cerimónias a realizar estavam previstas, como se vê, para o ano em que S. João da Madeira choraria, em novembro, com oitenta e um anos, a agonia de Garcia. A guerra já tinha começado, mas Lisboa encheu-se de vaidade e orgulho pátrio durante todo o ano de 1940. Dois anos antes, numa terça-feira, dia 28 de junho, o conde chegara a Lisboa para comprometer a comunidade portuguesa do Brasil nas festividades. Na sua terra natal, há muito que se tinha constituído uma comissão para o receber com toda a dignidade e circunstância. Os bombeiros de S. João da Madeira fizeram-se então ouvir enquanto membros ativos da comissão encarregada de preparar ‘uma carinhosa receção que traduza, muito justamente e muito sinceramente, toda a gratidão do povo de S. João da Madeira por tantas e tão desveladas provas de generosa benemerência’. Todos sentiam, pois, bem merecida a homenagem de reconhecimento e gratidão de uma população de alma e coração profundamente agradecidas.
A tarde dia 30, com a chegada do conde altruísta e da sua família, foi uma tarde simpática e prazenteira. Era quinta-feira. Escreveu o repórter no número 430, dia 17 de julho de 1938, na primeira página d´O Regional: ‘A receção que se lhes preparou resultou brilhantíssima e foi a prova eloquente do quanto Suas Excelências são queridas e respeitadas do povo de S. João da Madeira’. A espera começou fora de portas, com muitos notáveis da terra a dirigirem-se para a chamada reta de Albergaria, na estrada número um. Entre os presentes, alguns professores do Colégio Castilho, José Cerqueira de Vasconcelos, Beatriz Pereira Tovar e António Ferreira Batista, este último até então comandante da ‘Sétima Lança’ da Legião Portuguesa, sediada em S. João da Madeira. Os três professores acompanhavam, de camioneta, um grupo de alunos, de ambos os sexos, que iam fazer exames em Aveiro. Quanto aos automóveis, um a um, cerca de duas dezenas, iam chegando e formando extensas filas ao longo da estrada, aguardando a passagem dos condes. Eram dez horas quando o automóvel dos condes surgiu ao largo, concentrando todas as atenções. António e Carolina apearam-se, cumprimentando e abraçando, numa expressão de carinho e amizade, o numeroso grupo de conterrâneos que os esperava com impaciência. Duas raparigas, Marília Margarida Leite da Silva e Maria Estela Sampaio Almeida, entregaram à condessa Carolina dois ramos de cravos, em nome dos bombeiros voluntários e da ‘comissão de Iniciativa do Parque’ – a ‘Ponte dos Garcia’, não esqueçamos, tinha sido contruída com o dinheiro do conde. Seguindo o automóvel dos condes, vinte carros, incluindo os dos bombeiros S. João da Madeira e de Arrifana, puseram-se em marcha a caminho da terra natal do conde. No seu palacete aprazível, acomodada ao seu conforto e às agradáveis sensações do verão português, a família Garcia permaneceria entre nós durante alguns meses. Chegada a ocasião, a partida para o Rio seria mais sombria que a chegada.

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