Calhou-nos nascer aqui. Por aqui, numa terra que um dos nossos mais ilustres e veneráveis, que a conhecia com mais detalhe que nós, assegurava ter pouquinhos pergaminhos. Com uma história, pois, de limitada dimensão no tempo. Valerá a pena narrar essa história, abrir a boca, escrevê-la enquanto caderno de encargos, discursos de despedida e lamúria de carpideiras? Para que servirá uma narrativa distorcida, com rumores e desculpas, sentimentalismo e autocomiseração? Calhando-nos nascer aqui, patinhos feios na nossa pertença, tínhamos de gramar a nossa terra, as suas tradições e costumes, a sua estreiteza, as censuras e os desejos pouco expeditos. Como comportarmo-nos, sem mal-entendidos, com os nossos antepassados? Se recuarmos tempo abaixo, perdendo-o de vista, quando os registos eram menos dignos de crédito, não temos ainda hoje como coisa certa a terra onde cada um de nós nasceu. As crónicas não são risíveis, escarninhas, e incluem alguns dos mais considerados vultos da nossa história secular. Que o diga o nosso primeiro rei, no seu tronco francês, com o berço disputado, conforme a queda e os afetos, por Guimarães, Coimbra ou Viseu. O preço de cada um daqueles lugares continua alto, irredutível e teimoso na penumbra, ainda que se reconheça que a mãe de Afonso, o filho de Henrique, por ocasião do ano em que o príncipe nasceu, pernoitasse pelas Beiras mais afastadas do mar. Na cidade do meio, sabemos que o rei está sepultado, na igreja do mosteiro onde instalou o seu ´scriptorium´. Ali se guardaram, no meio do silêncio, narrativas sólidas e respeitáveis. Sepultado solenemente nos Jerónimos, quando se tornou herói, também Camões mantém sítio incerto no nascimento. Coimbra, há quinhentos anos, onde tinha nascido antes Sá de Miranda ou, alguns séculos depois, Camilo Pessanha? Se calhar, Constância ou uma terreola perto de Chaves? Lisboa, provavelmente? Foi na capital que, com cinquenta e tal anos, Camões morreu cheio de fome, oito anos depois de publicar ‘Os Lusíadas’, com a graça de D. Sebastião. Na sua desgraça, quem poderia socorrer Camões na hora da morte? Ao contrário do que se possa pensar, não são só os pobres que têm problemas, muitos ricos também os suportam, como a má consciência ou a cisma dos buracos da agulha. Ou a melancolia, a qual dizem ter mais tentações e encantos que a depressão. O inventário não tem limites definidos. Quem diria há uns anos que o nosso mais afamado e iluminado marquês, alfacinha dos sete costados, nasceu afinal para os lados do Douro, na remota Sernancelhe?

Ainda que nascidos numa terra sem pergaminhos, para glosar um nosso bem-nascido jesuíta, seria o nosso berço colorido e acolhedor? Tínhamos de o gramar, de má vontade, com pequenas ideias e algumas aspirações secretas, crescentes, de cortar amarras, entrar em contacto direto com o mundo e encontrar a liberdade. Conseguimos registar e fixar as intuições sonoras, as impressões auditivas, os traquejos dos nossos primeiros anos de vida? Ainda é a liberdade o maior dos nossos calos, para esconjurar medos reais e imaginários? Ficamos puros e limpos como os passarinhos, a nascer tontos, mas com sentido de hospitalidade? Fomos afortunados, mesmo sem encontrar as melhores condições para viver? Mesmo sem saber ler nem escrever, sem manter o interesse pela escola e tirar boas notas? Ficamos obrigados a pensar, picuinhas, sem rótulos? Muitos dos nossos moradores, em sentido, examinando à vontade o ambiente, parecem prontos a abanar a cabeça. Não temos muito para investigar e reter a atenção, com paciência, maçadores, com névoas cinzentas e sentimentos de perda. Até certo ponto, calhando-nos nascer aqui, na nossa aldeia de bichinhos cansados e coloridos, somos filhos da terra, moços e moças bondosos e atinados, com olhos desafiantes. Com um imbróglio para resolver, com ligeireza e prudência, sem ataques de riso. Um parênteses curvo para dar relevo a mistérios que perturbam a nossa identidade, a passagem do tempo, o nosso bem-estar físico e as nossas faculdades emocionais: ainda podemos escolher ser a formiga laboriosa ou a cigarra indolente? A massa, dizem, não tem obrigatoriamente de ser uniforme. Podemos manter-nos vigilantes, com memória seletiva. Com pensamento identitário e sentido de solidariedade dentro do grupo a que pertencemos, ao que nos prende ao mundo que nos rodeia, devemos fazer qualquer coisa por ela, a nossa terra?
Os nossos ‘brasileiros’ aqui nascidos remediados, nem ricos nem pobres, depois claramente ricos, gostavam de favorecer as causas humanitárias na sua terra natal. Os óbolos, a filantropia, a caridade institucionalizada. Sem histórias da carochinha. A mais famosa condessa da nossa região, a de Penha Longa, tinha nascido na Baía, mas o pai e o marido eram nativos do Couto de Cucujães. Também Clementina Libânia nunca relaxou, servindo-se da imaginação e fixando a sua atenção e discernimento nos coitados da sua terra adotiva. A condessa, dizia-se no fim da sua longa existência, só podia ter morrido em Cucujães, como aconteceu no dia 17 de setembro de 1921. Uma vida longa orientada para a comunidade. Longe de Lisboa, da Lapa ou de Sintra, do cosmopolitismo e dos paraísos onde viveu a infância e a juventude, a condessa escolheu o couto para ser sepultada. Foi o que também fez o homem do nosso hospital, Francisco José Luiz Ribeiro, agarrando-se com força à sua identidade natal. Também ele se inspirou nas histórias de outros, que se fizeram à vida de uma forma intuitiva, vislumbrando um futuro melhor para os seus conterrâneos mais desgraçados. Luís viveu muitos percalços desde a infância, filho de humildes agricultores, à idade adulta, na cidade de Rosário, onde foi cônsul, até regressar podre de rico a S. João da Madeira; com identidade própria, como a condessa de Penha Longa, fazendo tudo o que lhe era possível para conseguir abrir, na sua casa da ‘estrada real’, um hospital. Com géneros assim, como a condessa e o cônsul, gente recetiva à bondade e à compaixão, em profundidade, deixamos de depender tanto da má sorte, do infortúnio e da miséria.
O tempo vai passando. Refletimos: ainda vale a pena aprender, com nós mesmos e com o mundo? A nossa cachimónia, com o seu sentido de oportunidade, guarda alguns talentos e preserva certas aptidões. Quase de certeza, pondo de parte a comichão e as minudências, a maioria de nós acredita que os que trabalham vivem melhor do que os que não trabalham. Ou não estudam, de quem perdemos as pegadas. Quase três dezenas de anos depois da morte do nosso homem de Rosário, a terra onde nasceu e onde foi enterrado decidiu homenageá-lo enquanto cidadão do mundo. Foi num domingo de primavera, 16 de abril de 1939, quando dois bustos foram descerrados no recinto da entrada do hospital. Um dos bustos era o de Oliveira Júnior, o primeiro provedor da ‘Santa Casa’ local, que amparou o projeto do hospital; o outro busto, de Luiz Ribeiro, que o criou. Beatriz Pereira Tovar, a poetisa de serviço, homenageou Júnior e Ribeiro com dois sonetos revestidos de gratidão e fulgor. No louvor, Beatriz enalteceu em Júnior uma trindade completa: o patrão, o operário e o amigo. E ainda o pai e a santidade cívica do homem sereno e absorto, que deu toda a vida, acima de todos, ‘abrigo aos pobrezinhos’. Por seu lado, de Luiz, recordou Beatriz o filho preferido da nossa terra, o seu intenso amor ao mundo. Reencontramo-nos com ele, no regresso à terra. Nas suas mãos e coração, na morte ausente, cresceu o mais profundo amor ao mundo. Num momento de reflexão instrumental e de propaganda social, Luiz decidiu doar todos os seus bens aos doentes de S. João da Madeira, abrindo-lhes as portas do conforto, do sossego possível. Um hospital, para equilibrar a doença e a saúde, a morte e a vida, o tempo que situa e retém a nossa vida. O que Luiz concebeu, Júnior amparou. O caminho não foi curto, com obstáculos e tormentas, mas assim se vê como não se perde a esperança.