Faça-se justiça à paciência da opinião pública. Em 1915, num tempo conturbado, cheio de teimosias e de ameaças de descristianização, a maioria dos leitores do primeiro jornal de S. João da Madeira, ao folhear a edição de 28 de março, estava longe de se sentir impermeável às provocações de uma parte do regime. Ainda que ninguém soubesse por quanto tempo, os mais conservadores continuavam a experimentar apreensão e angústia com os novos tempos. Apesar da guerra, a levar-nos até África e a atravessar as fronteiras com a Espanha, faltavam oportunidades para agir. Para essa maioria conservadora e católica, as atrocidades da época eram difíceis de aguentar e quase todos tinham dificuldades em lidar com alguns sentimentos irritantes. Entre os mais esforçados, uns contentavam-se em pensar, misturando preocupações interiores com a satisfação das vidas que se cumpriam, material e moralmente. Outros juntavam deveres prometedores às incertezas da retórica deplorável daqueles tempos. Para muitos, desde que a ordem se mantivesse, bastava encolher os ombros no conforto do sofá. Para não perderem, de uma vez por todas, a boa disposição do momento. Fosse como fosse, quando alguma coisa estivesse para mudar, seguindo a ordem e a orientação do jornal da terra, importava não dar sinais de ingratidão e abandono. Quem é que, afinal, em última análise, gostava daquilo?
A devoção local à República, sobretudo à do partido democrático, não era muito fiável. Eram muitos os que olhavam aquela fação mais perigosa e radical dos inimigos do trono e do altar como uma perigosa intrusão nos bons costumes e nas boas maneiras. A encruzilhada a que quase todos sentiam ter chegado tinha um destino concreto a evitar. Ninguém queria ficar pendurado. Não havia escolha entre o caminho que levava à aceitação e reconciliação com a laicização – a do casamento civil ou a do divórcio, por exemplo - e um outro que prosseguia, em linha reta, à reafirmação da fé ameaçada. Instintos, impulsos ou indecências superavam-se com alguma facilidade. Sendo as teses democráticas absurdas por defeito, um jornal como A Defesa Local tinha nascido um pouco tarde para a impiedade incrédula do republicanismo mais afoito, insensato e pusilânime. Tal como os seus leitores, também o jornal não queria fazer um caminho inverso ao normal. Por isso, na primeira página da edição de 28 de março, não poupou nos pormenores laudatórios da vida exemplar de um padre nascido na terra, no seio de uma boa família, no dia 22 de março de 1883. Escolhido o alinhamento, como se, apesar das contingências, todos tivessem de carregar a mesma cruz, A Defesa Local não se esqueceu de fazer, na página seguinte, uma breve referência a uma festa dos novos tempos, a festa da árvore. Se o padre António era o protagonista da primeira página, a fotografia do carro alegórico, ornamentado gentilmente por Quintães Braga e com algumas crianças a segui-lo, era-o da segunda.
Para a segunda página bastava a fotografia mal tirada e uma nota breve de rodapé. O carro era encantador, como as crianças, mas a festa era um sinal estranho dos novos tempos. Conhece-se a narrativa: entre os novos valores e símbolos da República – como o ensino laico, com a substituição de religião e moral por uma disciplina de educação cívica - destacava-se o culto da árvore. A primeira festa da árvore tinha-se realizado no dia 26 de maio de 1907, no Seixal, ainda no tempo da monarquia. Promovida pela Liga Nacional de Instrução, na sua organização apareciam dois nomes conhecidos da Maçonaria, António Augusto Louro e Manuel Borges Grainha. A primeira festa da árvore foi um enorme sucesso, cheia de alunos e de professores na rua e com a adesão fervorosa da população do Seixal. Consta do entusiasmo geral a boa vontade de muitos cidadãos iluminados e das populações das proximidades da povoação da margem sul. Os mais esclarecidos tinham notícias de um país desarborizado, com escassez de folhosas, com montanhas cheias de erosão, pântanos por secar e dunas por fixar... Num país habituado a maltratar as florestas e as árvores em geral, quase sempre carente de madeira para queimar e muitas vezes em colapso ecológico, iniciava-se, assim, na margem esquerda do Tejo, um movimento cultural e cívico de celebração dos benefícios da árvore e da floresta. Uns anos depois, já com a República, pareciam estar a chegar a todo o lado novos protagonistas, com novas atitudes e novas formas de encarar e de agir no mundo. Concentremo-nos no essencial da tarefa: a da plantação de árvores num ambiente festivo e com vozes consonantes nos muitos discursos de propaganda a favor da árvore.
O carro alegórico de Quintães Braga era, em S. João da Madeira, uma abordagem clássica da festa da árvore. A República consagrou a festividade por todo o país, em Lisboa, no Porto, em Coimbra, nas Alcáçovas, na Lousã, em Almodôvar, em S. João da Madeira... Ao catecismo católico contrapunha-se o breviário republicano das três cores: a da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Desde 1912, um jornal, O Século Agrícola, organizava a festa por todo o lado, convencendo, com brochuras e postais, com árvores e plantas, as escolas e as autarquias, as crianças e os professores, a fazerem a propagação e a defesa do culto da árvore, fosse ela monumental ou não. Uma revista com seis números, editada entre os anos de 1914 e de 1915, divulgava poemas em louvor das espécies vegetais, como os de António Correia de Oliveira, reunidos no livro A Alma das Árvores -, algumas máximas florestais e muitos discursos e palestras apologéticos dos benefícios da arborização num país maltratado por séculos de incúria e desleixo. Com as suas festas simpáticas e coloridas, nas escolas e nas mais diversas localidades da província, o culto da árvore era considerado, naturalmente, um conhecimento mais esclarecido do que as festas católicas, estioladas e cinzentas no seu obscurantismo deliberado, à volta das missas, dos batizados ou dos enterros.
Apesar da fotografia do carro alegórico de Quintães, um jornal conservador como A Defesa Local não conseguia disfarçar um sentimento de antipatia pelos novos cultos republicanos. As iniciativas de O Século Rural podiam ser cândidas e enternecedoras, mas não valiam muitos comentários. Quem lesse aquele jornal, conhecia os nomes de meninos como António e Joaquim, que viviam na rua Costa Cabral, no Porto, a pedirem arvorezinhas para, numa festa íntima e recatada, as plantarem nos jardins da sua casa, sob a cuidadosa orientação dos pais Sousa Ribeiro. Ou a candura de Dona Egeménia de Oliveira Lopes, que vivia no Vimioso, também solicitando ao Século Agrícola algumas árvores para, com alegria e sentido de dedicação, as plantar no jardim com os seus quatro filhos pequeninos. Não se conhecem cartas de famílias de S. João da Madeira como as dos Sousa Ribeiro ou dos Oliveira Lopes. Também não temos notícia concreta da adesão sincera de um professor da terra a fazer uma alocução aos seus alunos sobre o préstimo das árvores; ou, então, cordato, a escutar de um dos seus melhores do sexo masculino uma récita grandiloquente de um mais ou menos longo poema vegetal. Nem sabemos se a Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, num gesto de candura e generosidade, se dispôs a oferecer algumas árvores – uma oliveira, uma cerejeira, um castanheiro... – para que os rapazes de S. João as plantassem, com a ajuda de alviões, de pás ou tesouras, no lugar mais central da terra, a Praça. Ou se o carro de Quintães foi acompanhado pela banda de música, com as suas vozes femininas, a tocar o seu melhor repertório. O sol podia picar alto por aqueles dias, mas o amor às árvores dispensava vivas inflamados à pátria, à república e ao Dr. Afonso Costa.