Bem-vindos e bem-aventurados os cândidos, ilustrados pela escola, a liliputiana massa alfabetizada. Não eram assim tantos os que se sentiam acomodados à moléstia depressiva: o analfabetismo, pois então. Cruzes pesadas: muitas habitações operárias eram miseráveis, dignas de dó e compaixão; a fome era amiudada; as tabernas da terra, lugares estranhos, ficavam cheias ao fim da tarde, infames e indigentes, arruinando a féria dos imprudentes e dos levianos; a luta diária pela sobrevivência era surda e desditosa, miserável, cheia de achaques; muitas vezes, as mercês dos patrões, desdenhosas e acanhadas, eram desprezíveis e pouco generosas.
Mas ninguém, com dois dedos de testa, sem ninguém ficar de parte, podia recusar a dádiva generosa. Um alvo afortunado: era uma obrigação de serviço combater a ignorância e o analfabetismo. Quase todas as histórias pessoais de patrões e operários seguiam a mesma prescrição: eram muitos os que nunca, ou só fortuitamente, inopinados, tinham ido à escola aprender as primeiras letras. Na sua fraqueza vulnerável, os dias eram ruins para os que não sabiam ler nem escrever. Um marasmo permanente, lugar comum estafado; uma vida dura que todos acabavam por detestar, tão ordinária; uma amorfia sonora e severa; uma forma de ficar mal com a vida. Mas o mundo de António José e de outros industriais já não era comparável aos dos seus avós e pais. Alguns patrões, autodidatas como o nosso concidadão, começavam a pedir mais para si próprios e para os outros, os que trabalhavam para si. Como um belo presente a repartir, generosamente, por quem gosta de dar. Eles próprios se apercebiam que o mundo, devagar, devagarinho, tinha de se renovar.
Sentiam-se na obrigação de crer, como ocorria com muitos ´brasileiros´ (o conde, o visconde, o comendador...), que a escola e a instrução eram um trajeto seguro contra as trevas, a cegueira, a falta de maneiras e de civilização. Entre os analfabetos estavam muitas energias e capacidades encravadas, muitas iniciativas amortecidas. ´Por falta de luz cerebral´, tinha-o dito Oliveira Júnior, em 1915, repetidamente, quando defendera em S. João da Madeira a ´missão das escolas móveis´ e da aprendizagem da leitura pelo método de João de Deus.
Num centro fabril com um operariado numeroso como S. João da Madeira, ´era fácil avaliar´ – considerava Júnior com o conhecimento que acumulara – ´os progressos locais que o derramamento da instrução viria a impulsionar´. Uma coisa certa, sensata, um facto adquirido, por mais vulgares e brutas que fossem as almas operárias. Disse-o Júnior à mesa, ao lado de António Ferreira da Silva e da professora Elvira, a nova regente da ´missão das escolas móveis´, que substituíra o professor Marques, gravemente enfermo. Era domingo, dia 17 de outubro de 1915, e a sala estava cheia de gente. Lá fora, a chuva, miudinha e persistente.
A professora Elvira era a oradora de serviço e não tropeçou nas palavras que quase todos conheciam. Prometeu ficar de vigília, com paciência e persistência. A professora falou com limpidez, teimosa, seguindo cálculos cautelosos, mas afoitos. Empolgou-se na apreciação do método de João de Deus, ´o melhor e mais prático que conhecia´. A sua voz era calma, mas fervorosa. Leia-se o bordão: João de Deus tinha ´gasto uma vida quase inteira para deixar à posteridade a sua grande obra instrutiva, cujos resultados práticos estão evidentemente comprovados pela luz que tem derramado contra as trevas do analfabetismo´.
Restava à professora corresponder à missão sublime de difundir os hábitos de leitura entre os filhos dos trabalhadores de S. João da Madeira. Esforçar-se-ia, como o professor Marques o tinha feito antes dela, ´pelo bom desempenho do seu cargo para ver se colhia do seu trabalho um bom aproveitamento para os alunos da Missão´. Em última análise, o sinal vergonhoso, a marca infame, podia ser tratado.
Ninguém mais, entre a numerosa assistência, incluindo os outros membros da comissão de acompanhamento imposta pelo regulamento das ´escolas móveis´, se dispôs a usar da palavra. À exceção de Júnior, naturalmente, com o seu apurado sentido prático da existência. Com o seu estribilho, para reforçar a ideia de que, sem instrução, um homem ficava privado da liberdade, sem direitos cívicos. Duplamente servo, reforçaria o nosso concidadão: por um lado, pessoalmente, era um ´escravo da sua ignorância que lhe obscurecia o alvo das suas aspirações´; e, por outro lado, no que respeitava à comunidade, um ´escravo da sociedade culta que só o utilizava como ação muscular nos trabalhos mais rudes´. Um ascensor social, fascinante na sua mobilidade, eis um dos melhores pressupostos da instrução. Naquele domingo de outubro, acompanhado na comissão pelos habituais cidadãos ativos da terra, nos seus fatos escuros e convencionais – o doutor António Leite da Silva; o farmacêutico Laranjeira; António Ferreira da Silva; Inocêncio Leal; Quintino José da Silva e Francisco Lopes Simões –, Oliveira Júnior veste bem a pele de um homem afortunado e bem-sucedido. De boas maneiras. Aos alunos matriculados, sem frases azedas, intuitivo, a medir o seu caráter, recomendou assiduidade e pontualidade aos exercícios escolares que, todos os dias úteis, iriam pontualmente começar às quinze horas. Júnior não queria que esses alunos o desapontassem, a si, à professora Elvira e à comunidade em geral. Era--lhe extremamente grato ver na sua terra a continuação das aulas orientadas pelo método de João de Deus, porque o aproveitamento escolar colhido das missões anteriores tinha sido notável. Toda a gente presente o reconhecia: se a atual missão da professora Elvira fosse cabal, durante os anos precisos e necessários, gradualmente se iria extinguir a enorme percentagem de analfabetos que, apesar das leis da República e do altruísmo pessoal e paciente dos ´brasileiros´, ainda havia em S. João da Madeira e nas terras à volta. De onde eram oriundos muitos operários da indústria chapeleira. Vindo por caminhos, como os do Orreiro.
Ao princípio da tarde, na escola móvel de S. João da Madeira, a professora Elvira principiou obstinada os seus exercícios de iniciação à leitura. Sempre à espera de alguém que ainda pudesse chegar, a professora Elvira sabia que nem todos os seus alunos iam ser assíduos e pontuais. Mas, como valia a pena perderem aquele bocado da tarde com ela. A sua cabeça trabalhava sempre, como se vê. A professora tinha um sonho. O seu espírito estava em paz, carregado de respeito intelectual pelo mestre. Elvira confiava devotadamente no método da cartilha maternal de João de Deus, que não obrigava um aprendiz a decorar o alfabeto de cor e salteado. O laço que a professora queria manter com os seus alunos era muito sólido: era a leitura. O método de João de Deus, ao contrário da didática concebida pelo velho e casmurro Castilho, não frustraria os seus cálculos palpitantes. O rosto da professora Elvira inspirava confiança. Passariam os seus alunos no teste? Provavelmente. Podia, entretanto, fazer-se um pouco de história. As ´escolas móveis´ pelo método de João de Deus tinham sido fundadas em maio de 1882 por maçons e republicanos. Em nome do serviço público e da regeneração, surgiram, como cogumelos, nos locais onde não existiam escolas fixas, no meio rural sobretudo. Os censos de 1890, coincidindo com o vexame do ´Ultimato, eram medonhos: apenas um em cada cinco portugueses sabia ler.
Para contrariar o escândalo, a República oficializaria as escolas móveis em 1911 e iria implementá-las em 1913, dois anos antes da professora Elvira começar a dar aulas de leitura em S. João da Madeira. A professora, carregada de voluntarismo, contava com o apoio de Júnior e dos cidadãos do costume, do seu auxílio financeiro, para, disseminando o método de João de Deus, o menos prudente e restritivo, combater o analfabetismo na terra dos chapeleiros. Em 1915, como já se soubesse, as escolas fixas, públicas e privadas, ainda eram insuficientes em S. João da Madeira e nas terras à volta.