António José era um homem simples, reservado, recatado, senhor respeitável, conhecido por todos e admirado por cada um de nós. No ano em que começou a Grande Guerra, a mais fatídica até então, António tinha feito cinquenta anos. No seu sólido universo, descia todos os dias a rua que viria a ter o seu nome para entrar na fábrica. As máquinas rufavam, as pancadas sucediam-se, vendo bem era impossível gravar o silêncio. Sem perda de tempo, com a testa a brilhar de suor, era preciso trabalhar. Há duas décadas, António começara a modificar a paisagem industrial da sua terra natal, de tal forma que viria a transformá-la no maior centro chapeleiro do país, ultrapassando o Porto e Braga. Constam dos anais que a primeira oficina de chapéus de S. João da Madeira data do ano de 1802. Sinal dos tempos, no ano em que Gomes de Pinho fundou a sua pequenina oficina de chapéus na acanhada e pachorrenta aldeia da província, o reinado da primeira rainha de Portugal inquietava-se na capital. Na mesma altura em que D. Maria I e o marido ficaram fascinados com o projeto de Francisco Fabri para o Palácio da Ajuda, o poderoso e irascível intendente da polícia Pina Manique foi, a conselho dos emissários de Napoleão, afastado do cargo de espiar e perseguir quem se excedia em maus hábitos e costumes detestáveis nas ruas de Lisboa. As coisas não abrandaram nas festas de Santo António daquele ano de 1802, quando a população alfacinha decidiu varar de frio corações serenos e descansados pondo-se a ouvir a ´Marselhesa´, tocada em acesa e acalorada homenagem ao santo.
Não há muitas notícias sobre a exígua oficina de chapéus grosseiros de J. Gomes de Pinho. Como não há sobre outras oficinas que foram surgindo: a de José António da Costa, fundada, em 1858, para confecionar também chapéus de lã grossa, ou a de Francisco Dias de Pinho, quatro anos mais nova. Há mais algumas informações sobre a decisão de Oliveira Júnior, regressado do Porto com vinte e sete anos, ter montado a primeira oficina de chapéus de pelo na povoação. Assim tinha de ser para que, um dia, não muito tarde, o progresso da terra, demográfico, industrial, urbano, se tornasse inevitável, como norma infalível, doesse a quem doesse. Não havia tempo para o aborrecimento ou o enfado. Demoraram ainda alguns anos, mas, um dia, Oliveira Júnior tornar-se-ia no dono da maior fábrica de chapéus da Península Ibérica. Era a sua ´Empresa Industrial de Chapelaria´, que ocupava uma superfície de oito mil metros quadrados; que possuía uma máquina a vapor de cento e oitenta e cinco cavalos, um gerador de eletricidade de cem quilowatts e vinte e dois motores elétricos. Com uma capacidade produtora de mais de mil e quinhentos chapéus por dia. O sucesso de Oliveira Júnior teve imitadores atrevidos e ousados. Vejam o que aconteceu: quando o nosso homem morreu, S. João da Madeira possuía dez fábricas que se dedicavam ao fabrico de feltros, fibras que se prendiam umas às outras formando uma pasta consistente. A terra de Júnior possuía então as maiores fábricas de chapéus do país.
Homem inteiro, integral, Oliveira Júnior. Havia quem lhe atribuísse uma determinação superior que contagiou outros conterrâneos. Soube servir-se dos braços para construir, aos poucos, com persistência e inteligência, a sua riqueza, os êxitos materiais e a prosperidade económica. Tornou-se, por consenso geral, no presidente da ´Associação Industrial e Comercial´ e no primeiro provedor da ´Misericórdia´ local. A primeira associação juntava os industriais e os comerciantes na defesa dos seus interesses comuns. Todos reclamavam melhoramentos materiais considerados de irrefutável utilidade para o aperfeiçoamento e o bem-estar locais. No início dos anos vinte, quando a indústria era o destino, as reivindicações e as benfeitorias abreviavam-se, no essencial, à instalação da luz elétrica e de uma rede de telefones; à melhoria das depauperadas instalações da estação do telégrafo-postal; à elevação de S. João da Madeira a concelho. Era urgente aumentar o ritmo da modernidade e aproximar S. João da Madeira dos maiores e mais vigorosos centros. Escapar de vez à periferia. A má fortuna da estação era notória, com as demoras na entrega da correspondência a fazerem muita gente perder dinheiro, transações cambiais, resignação e paciência. Tinham que se encontrar força e energia, combiná-las, para superar a inércia e por as coisas em ordem. Uma fábrica com a dimensão da de Oliveira Júnior não podia conservar-se sem ligações telefónicas diretas ao Porto, que o mesmo era dizer com Lisboa, Coimbra, Braga, enfim, com Portugal inteiro. O nosso industrial precisava de uma ligação urgente e procurara uma solução de recurso via Espinho. Esforço baldado, que não deu resultados, envolto em teias de aranha, porque a concessionária, a Anglo Portuguese Telefones, só estava autorizada a explorar a rede telefónica num raio de vinte quilómetros a partir do Porto.
A determinação superior que imputavam a Júnior fazia brotar a noção do auxílio mútuo. Nesse caso, jamais se poderia fazer desaparecer a gratidão. Não conseguindo deixar de pensar na pobreza e na doença, António José aceitou o cargo de presidente da mesa da ´Santa Casa da Misericórdia´. Tomou posse como provedor no dia 28 de maio de 1922, seguido e acompanhado por algumas sumidades locais: Durbalino Laranjeira; Inocêncio Leal; Manuel Luís da Costa; Quintino da Silva; Genuíno José António; Joaquim Milheiro; José António das Neves; Nicolau da Costa. Na hora da sua morte, um admirador confesso, falando no cargo de provedor, diria que ninguém o poderia igualar em tudo o que lhe fora peculiar. Menos ainda excedê-lo, com a orientação que soube imprimir à ´Misericórdia´, à ajuda aos pobres e ao acompanhamento e cuidado dos doentes. Como se fosse um livro aberto, com páginas de prata e letras de ouro, distribuído, sem olhar a quem, por um pai meigo, vigilante e extremado. O diretor do ´Colégio Castilho´, Cerqueira de Vasconcelos, não pouparia nas palavras laudatórias, escritas no nevoeiro cerrado de um dia muito frio de inverno: “Grande, como ele foi grande, santo e sublime, como ele foi sublime e foi santo”. Um novo apóstolo de Cristo nos últimos anos da sua existência, praticando a caridade sem vaidade e aparato, cristãmente. Como Deus não conhece a maldade e, por isso, não a pode praticar, talvez, afinal, o ´senhor Oliveira´ não tivesse morrido naquele dia gelado de finais de janeiro. Ao contrário de Ícaro, o seu voo foi sereno, limpo de nuvens e calor, cheio de cânticos de redenção.