De que falaram Oliveira Júnior e a mulher na noite das eleições? Da má fé, dos batimentos cardíacos? Nunca o saberemos. Mas o ajuste de contas passava por limpar o seu nome. Temos conhecimento de que o nosso industrial não tolerou a ofensa dos seus difamadores. Como não desconsiderou os acontecimentos iniciados na tarde do dia 3 de novembro de 1914. Foi quando a nova fábrica de Júnior começou, segundo ´O Chapeleiro´, de 18 de outubro daquele ano, a “empregar os modernos processos mecânicos”. Num edifício enorme e espaçoso, confortável e arejado, a nova fábrica passou a trabalhar com máquinas, à experiência. O jornal dos operários chapeleiros portugueses deu então voz ao desassossego dos trabalhadores. Eram duas as suas reivindicações: uma, no sentido de os patrões da ´Empresa Industrial de Chapelaria´ demitirem os dois alemães que vieram montar as máquinas; outra, a de esses patrões reverem em alta os salários. Uma comissão de chapeleiros foi recebida na fábrica. Alguns chegaram a admitir que, a dada altura, as negociações estavam relativamente bem encaminhadas. “Houve muita atenção” – escreveu-se no jornal – “por parte dos industriais”. Ilusões efémeras e fugidias: “porém, tendo todos os assistentes ao comício acompanhado a comissão, e como esta se demorasse, houveram comentários e até que é disparado um tiro de dentro da fábrica para a multidão. Esta, numa ânsia de defesa e desagravo, invade a fábrica, até que nesta altura a comissão fazendo conhecer as atenções dos industriais, conseguiu a retirada dos manifestantes, visto as reclamações terem sido atendidas com a palavra de honra dos industriais”. Há relatos díspares, com atitudes ameaçadoras dos operários, homens e mulheres à porta, vaias e apupos ruidosos; um tiro maroto a furar o guarda-chuva de um operário, o arrombo do portão principal da fábrica; uma série de factos apontados como fora da lei, alteração insólita e inusitada da ordem pública. Um jornal republicano do concelho, ´O Radical´, arguiu os manifestantes de balbúrdia pura e dura, burla de ambiciosos, merecendo, por isso, “a mais formal reprovação”.
Com a passagem de ano, as minudências foram serenando em S. João da Madeira. Houve operários dispensados, é exato, e os salários não subiram como era esperado. Consta que, na conjuntura, para que as ruas não ficassem sujeitas a novos embaraços e tumultos, patrões e trabalhadores chegaram a um certo entendimento. Afinal, segundo alguns intervenientes, Oliveira Júnior continuara a revelar “grandeza de vistas”. Da troca de correspondência, logo no início do desassossego, depreende-se que muitos operários terão percebido que nem todas as máquinas eram nocivas, devendo ser reduzidas, em última circunstância, a sucata; havia algumas delas que podiam laborar sem perdas dos trabalhadores, como era o caso da ´bastissoza. Mas sem desmandos, como pensava um personagem de ´Unhas Negras´, Manuel Ferreira. Hesitante e perplexo, sorumbático, imaginemos o personagem de João da Silva Correia a coçar a cabeça: “Se as tais máquinas eram coisa tão perfeita como se dizia... adeus fulas; adeus apropriagens; adeus toda essa complicada engrenagem de sacrifícios mediante a qual os pobres ainda tinham a sua oportunidade de trocar sangue por pão”. Alguns operários foram readmitidos, com um salário mínimo de quinhentos réis diários para os homens e menos trezentos para as mulheres. Quase todos queriam mais qualquer coisa. E nem todos acreditaram no final feliz do conto de fadas. Quando começou a campanha para as eleições legislativas de 1915 houve quem lembrasse, num folheto, o desemprego provocado pelas máquinas e os baixos salários da ´Empresa Industrial de Chapelaria´. Oliveira Júnior ficou calado e discreto durante algum tempo. Talvez tenha sentido, lá no fundo, como eram ainda profundas a estima e a deferência que os seus conterrâneos tinham por ele. Não, injúria e enxovalho, não era verdade que a situação laboral dos operários da sua fábrica tenha piorado com o recurso aos ferros ferrugentos e ao trabalho mecanizado. E, menos ainda, como afirmavam os signatários do folheto, que o trabalho de homens e mulheres fosse tão mal pago.
A coscuvilhice e as intrigas de Pardal e companhia, a gravidade moral das suas censuras, não iriam ficar sem objeção. Júnior não estava sozinho na defesa da sua reputação. Cinco cavalheiros da terra foram desafiados a ajudar o maior industrial da terra a salvar a honra. Um médico, António Ribeiro Leite da Silva, um farmacêutico, Durbalino Alves da Silva Laranjeira, o dono do Hotel Central, Genuíno José António da Silva, e dois comerciantes, António Ferreira da Silva e Francisco Lopes Simões, foram convidados, como representantes da freguesia, a irem pessoalmente à fábrica de Oliveira Júnior para interrogarem os operários acerca da sua situação material; e ainda para terem em conta qualquer reclamação que quisessem fazer. Os cinco homens faziam parte da fina flor da terra. Como se escreveu n’ `A Defesa Local´, eram todos “homens de indiscutível probidade”. Nos finais de maio, tomaram a seu cargo uma incumbência que consideraram decente e honrosa. Levavam pedaços de papel com algumas perguntas e encontraram-se com vários operários na fábrica de Oliveira Júnior. Cada uma das perguntas, que começavam com um inevitável “é ou não verdade” ..., deixava acautelada a tenção. A começar pela primeira, a de “que todos os operários fulistas, apropriagistas, costureiras e afinadoras que existiam na fábrica velha estão empregados na fábrica nova”. Afinal, não só tinha sido cumprida à risca a lei sobre acidentes de trabalho como nenhum operário e operária fora despedido.
Consta que todas as respostas foram dadas, numa reunião matinal, por unanimidade e sem coação de espécie alguma. Estavam todos empregados como também era verdade que, desde que se começara a voltar a receber matérias-primas em quantidade suficiente, a fábrica dava trabalho todos os dias da semana. Ninguém vacilou por causa do preço da mão de obra: homens e mulheres estavam satisfeitos com o salário. Que as famigeradas máquinas não tinham prejudicado o trabalho dos operários. Que, durante a crise de trabalho que houvera em tempos, devido à falta de pelos de coelho, os trabalhadores tinham sido abonados com um escudo semanal, para auxílio da sua subsistência e das suas famílias. Que Oliveira Júnior a todos os seus operários, sem exceção, tratava com carinho e respeito, até no modo de dar repreensões disciplinares. Os cinco notáveis, com todas as perguntas e respostas formuladas por escrito, puderam resumir o inquérito, desmentindo o pasquim de Palmares e companhia: em momento algum, em tempos tão difíceis, com a compra das máquinas, Oliveira Júnior piorara a situação dos seus operários ou concorrera para a sua desgraça. Seis operários juntaram-se aos cinco cidadãos para assinar a ata: Maria Rosa Silva; Emília Rosa Soares; Manoel José Leite Regato; José de Pinho Marques; Benjamim Pais Vieira; e António Ribeiro Leita da Silva. De consciência descansada, o médico voltou para o seu consultório, Laranjeira para a sua farmácia, Genuíno José para o seu hotel, os dois comerciantes para as suas lojas. Fulistas, apropriagistas, costureiras, acabado o almoço, retomaram o trabalho.
Oliveira Júnior ficou mais aliviado. A féria não era muito alta, é verdade, mas os salários eram os que podia pagar. A sua fábrica de chapéus de pelo, com as suas máquinas e a sua mão-de-obra, iria fazer história. É certo que as famílias não podiam contar com outros recursos que não fossem os poucos centavos que o pai ou o marido levavam para casa todas as sextas-feiras. O opróbrio era, em qualquer circunstância, outro. Numa época de crises laborais e de salários baixos, a maior doença das famílias, o maior sequestro do pão, ainda era a taberna. A má, a dos taberneiros, gananciosos e irresponsáveis, que mantinham as portas abertas para além da hora legal. No seu artigo de opinião, publicado n’ ´A Defesa Local´, no dia 9 de maio de 1915, Oliveira Júnior porfiara a tragédia: “É sábado, aproxima-se a noite e dezenas de vozes, mães e filhos espreitam da porta do tugúrio, ansiosas, a chegada do operário que lhes vai levar o pequeno salário que durante uma semana ganhou. Pelo menos naquele dia não haverá fome”. Mas nem sempre o operário voltava para casa depois do sol desaparecer. O cronista agarra as imagens corriqueiras, as da noite que vai estendendo o seu manto, a treva que vai caindo sobre a pobreza envergonhada. Alguém vai regressar a casa tarde. As mulheres, não se calam todas. O agoiro é desgraçado, as gargalhadas estridentes; as palavras são idiotas, ominosas, os tabefes obscenos. O coração impiedoso O ar impregnado de injustiça: ...” a vossa família é numerosa e tudo está caro, ganham pouco, trazeis os vossos filhos quase nus, porque os vossos ganhos não chegam para tudo” ... Não havia muita indulgência para quem valorizava tanto a sua terra, como Oliveira Júnior: “Evitai que por toda a parte se diga que os operários da nossa freguesia são uns bêbados”.