Um ano antes da Alemanha declarar guerra a Portugal, no dia 9 de março de 1916, houve eleições legislativas. Era o sexto ano da República e muitos portugueses, na capital e na província, tinham perdido a vontade de sorrir, descontraídos, à tontice das piadas secas. Escusado será dizer que o ano de 1915, como o de 1914, com as suas agitações epidérmicas, manteve muita gente arreliada. Era a carestia de vida. Era o aumento das rendas de casa. Era a contínua subida do preço do pão e os assaltos aos armazéns e às padarias para os mais pobres arranjarem comida. Eram as greves e as reivindicações dos operários, os tumultos e os desacatos um pouco por todo o lado, em Tomar, na Régua, em Lamego, em S. João da Madeira, no Porto, em Lisboa, até nos arquipélagos. A estrela maior da República, Afonso Costa, apesar das ruidosas manifestações de apoio, era encurralado com as movimentações dos que estavam contra ele, em crescendo, dos anarquistas aos nostálgicos do rei. As intentonas sucediam-se, a agitação aumentava com a partida de soldados para defenderem Angola e Moçambique, obrigando o governo a abrir linhas de crédito extraordinárias para fazer face às despesas com os contingentes militares. Um dos heróis do 5 de outubro, Machado Santos, também ele, voltou a sair à rua, em protesto, para entregar a espada que tinha usado na Rotunda. Uns dias antes das eleições, a 3 de junho de 1915, arredado do poder, Costa apanhou um tremendo susto: fraturou o crânio quando teve de se atirar abaixo de um carro elétrico, com medo de sofrer um atentado. Mais cruel foi o ataque de mau génio de João Chagas, quando um tiro traiçoeiro lhe arrancou um olho.
No ano anterior os estados de espírito exaltaram-se em S. João da Madeira. O maior industrial da terra, António José de Oliveira Júnior, fora então confrontado com uma inaudita indignação dos seus operários chapeleiros. Uns anos antes, em 1891, o antigo operário chapeleiro tinha montado em S. João da Madeira, com Pedro Palmares, uma pequena oficina de apropriagem destinada ao acabamento de chapéus de pelo. Pioneira no fabrico local desse género de chapéus, mais esmerados do que os grosseiros chapéus de palha, a oficina de António José era então uma pequeníssima unidade de produção, de fabrico artesanal e familiar. O próprio Oliveira Júnior era o apropriagista, o que fazia os acabamentos, e a mulher, Carolina, a costureira. Um pouco mais de duas décadas decorridas, no preciso ano em que rebentou a Primeira Guerra Mundial, os limites de Oliveira Júnior como empresário de sucesso tinham crescido muito. Uma nova fábrica, nascida para substituir a velha Oliveira, Palmares & Companhia, iria mudar o aspeto geral da pequena aldeia que era S. João da Madeira. Naquele atarantado ano de 1914, Oliveira Júnior deixou de vestir a pele de pequeno industrial e de parente pobre da província. Consciente de que recebia menos atenção do que devia, decidiu transferir a sua pequena oficina para novas e modernas instalações, as da Empresa Industrial de Chapelaria. Nelas, introduziu o vapor e o maquinismo, alterando assim os processos de produção e iniciando, finalmente, o fabrico em maior escala do chapéu de pelo em S. João da Madeira. Três anos depois, quando os soldados portugueses começaram a chegar à Flandres, o modelo de Oliveira Júnior vingara: S. João da Madeira, com as suas dezoito fabricas e oficinas de chapéus e os seus setecentos operários chapeleiros, era notícia enquanto cabeça de cartaz da chapelaria em Portugal.
Mas o começo foi doloroso para os trabalhadores da nova fábrica. João da Silva Correia, em Unhas Negras, traçou em poucas linhas a contrariedade e o incómodo que eram as máquinas para um velho chapeleiro. Este ficou receoso, apreensivo por poder ser empurrado, sem piedade, compulsivamente, para um estado de limbo. Como escreveu o escritor da terra, não era possível brincar a bel-prazer com as máquinas de ferro: Vai ficar tudo a pão e água!... Naquelas malditas máquinas, metem-se coelhos ainda vivos, de um lado, e saem chapéus já prontos do outro. Mas se por acaso a obra traz defeito, não há dificuldade de maior. Devolvem-se os coelhos à engrenagem, e ela repõe os coelhos, vivos outra vez! Os velhos chapeleiros, aristocratas na sua longa aprendizagem do ofício, sentem-se desqualificados, desacreditados, em risco de desaparecer. Começavam a perder a doce ilusão de que a sua terra era um oásis sem o dissabor das máquinas de ferro a dispensar a mão de obra operária. Numa noite de inícios de novembro de 1914, uma terça feira, os trabalhadores dirigem-se à fábrica de Oliveira Júnior. É-lhes vedada a entrada. É crível que, entre os agitados, com medo de um futuro lúgubre, sobressaíssem as mulheres, a gritarem por pão e trabalho para os filhos. Arrombam a porta principal e são recebidos por Oliveira Júnior. Consta que o empresário, temendo pela vida quando ouviu um tiro, terá cedido às queixas e reclamações dos operários: a demissão de dois alemães que tinham vindo instalar as máquinas e a elaboração de uma nova tabela de salários. O estado de desassossego manteve-se durante alguns dias. Para repor a ordem foi necessário chamar trinta e seis praças de infantaria 24 de Aveiro e da polícia cívica de Aveiro. Não foi possível dispensar o estado de sítio. Deixou de ser permitido as pessoas agruparem-se na rua e as tabernas obrigadas a fechar a porta a partir das oito da noite. As máquinas começaram a laborar. Nenhum operário foi espancado.
Em meados do ano seguinte, quando decorria a campanha para as eleições legislativas e Oliveira Júnior apoiava Afonso Costa, os conflitos de novembro voltaram, com alguma perversidade à mistura, a ser recordados. À época já tinha terminado a comunhão de vontades e pareceres dos primeiros tempos da República. Lentamente, os republicanos tinham-se vindo a agrupar e a concentrar à volta de três centros de atenção. Três chefes, Afonso Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, com os seus três partidos, o democrático, o evolucionista e o unionista, cada um a manifestar as suas surdas oposições, os seus sintomas de desconjuntamento, a sua impaciência e pressa. Cada um com o seu jeito e com as suas fações, iriam tornar mais barulhenta a política portuguesa. Um republicano às direitas, Cunha Leal, condensou as aptidões que distinguiam aqueles três homens. Se Costa era douto, arguto, mais esquerdista em matéria política que em matéria social, o médico de Penacova era, sobretudo, um tribuno inspirado e ardente, com laivos de radicalismo. Quanto a Camacho, Leal ficou-se pelo intelectualista, arredio da multidão e eivado de anatoliano ceticismo. Para dano dos dois últimos, o grosso do velho partido republicano decidiu seguir o primeiro. Afonso Costa tornou-se, escreveu Cunha Leal, no astro principal em torno do qual gravitam os outros. Os democráticos tornaram-se numa espécie de partido único e Portugal num sistema político muito diferente do inglês ou do francês: sem o sistema de dois grandes partidos de poder, alternando-se pendularmente no exercício do governo, como acontecia em Inglaterra; e sem os numerosos partidos da França, cada um dos quais relevante para formar exequíveis maiorias de governo.
A 13 de junho de 1915 ocorreram as eleições legislativas. Os democráticos de Afonso Costa, a quem os adversários se afeiçoaram a designar como os empreiteiros da guerra, obtiveram nova maioria absoluta nas duas câmaras. A campanha eleitoral, incluindo a que ocorreu em S. João da Madeira, continuara cheia de rancores, de intrigas e de crónicas malquerenças. No miasma da desorientação, Afonso Costa ainda era quem melhor sabia fazer pela vida. As cisões republicanas, que levaram à formação dos unionistas e dos evolucionistas, não constituíam um obstáculo demasiado sério à vida dos gabinetes de Costa. Apesar do mau estado da nação: da questão social, da questão religiosa ou das conspirações monárquicas; da questão colonial, quase sempre maltratada e injuriada na imprensa; da crise financeira, diariamente mais intensa, e dos deficits orçamentais, que, a dar crédito a Carlos Malheiros Dias, galopam com a velocidade aproximada de um conto de réis por hora. Costa era uma figura admiravelmente disposta para o combate. Em 1912, quando escreveu Zona de tufões, Carlos Malheiro Dias chamou-lhe um chicaneur politique. Costa aprendera a falar sozinho: Entre os pigmeus incontáveis da República ele é, de facto, um gigante, não só pelo motivo suficiente de que em terra de cegos quem tem olho é rei, mas porque, sem contestação, o famoso político reúne predicados que em grandíssima parte legitimam as esperanças candentes dos seus entusiásticos partidários. No dia 29 de novembro de 1915, já recomposto da fratura na cabeça, Costa volta a tomar conta do ministério. Não chegou a conservá-lo mais de quatro meses. Por causa da União Sagrada e das imposições e encargos da guerra a que não íamos escapar, cedeu o lugar ao evolucionista António José de Almeida. Consta que, apesar de tudo, mais na sombra, Costa iria continuar a controlar as circunstâncias.