Antes que todos esquecessem, o soldado da Flandres António Gomes da Rocha fez as contas de cabeça. Por causa da grande guerra, uma terra pequena como S. João da Madeira, atolada nas rotinas e prudências da província, tivera quatro soldados mortos, duas viúvas e cinco órfãos. Ora, os números locais não estavam em harmonia com os números nacionais divulgados no Diário de Notícias pelo médico de Salazar. Byssaia Barreto, aquando da construção de um asilo para os órfãos da guerra. Fora a comunidade portuguesa no Brasil, com a sua proverbial generosidade, quem decidiu financiar o asilo junto a Coimbra. Mordido de danação, António Gomes da Rocha não teve acanhamento em acusar publicamente o conceituado médico de Coimbra de faltar à verdade. Byssaia tinha outros planos e pretendia desviar o dinheiro oferecido pelos emigrantes no Brasil para outros fins. Também louváveis, é certo. O homem que que fez mover a construção de leprosarias, de refúgios para idosos, de bairros económicos, de campos de férias e de colónias balneares, andava à época muito motivado nas campanhas contra a tuberculose. Por causa dessa lida mais urgente, Byssaia tentou convencer a comunidade portuguesa no Brasil a esquecer por algum tempo os órfãos da guerra. Essa comunidade, compassiva e esmoler, incluía alguns nomes sonantes de São João da Madeira, a começar por António Dias Garcia. Em 1929, atravessando mais uma vez o Atlântico, o conde tinha regressado por uns tempos ao seu palacete dourado de São João da Madeira. Na imprensa local, o antigo soldado António Gomes da Rocha fez um apelo comovente ao conde. Sendo este, como todos reconheciam, dotado de um coração diamantino e de uma grande generosidade, que empregasse todos os esforços para que não permanecesse quieta a obra de construção, na linda cidade das tricanas e dos estudantes, do asilo para os órfãos da Grande Guerra.
Mais de uma década desde o fim dessa guerra, com a abertura da delegação da Liga em S. João da Madeira, António Gomes da Rocha voltou a mergulhar dolorosamente na história do conflito mundial, quando, numa visão aterradora, as casas e as árvores se tornaram cinzas e milhões de homens foram linchados sem dó nem piedade. Leia-se o trecho do texto que o secretário da Liga publicou n’ O Regional de 24 de fevereiro de 1929: Foram cem mil os portugueses que em África, na França, no mar e no ar, arriscaram a vida para honra da sua pátria. Desses cem mil, muitos militares não mais voltaram, ficando sepultados, uns nos sertões de Angola e de Moçambique, outros nas terríveis trincheiras da Flandres e outros no fundo dos mares outrora sulcados – a voz firme – pelos nossos queridos e inesquecíveis companheiros do tempo das descobertas. Mas António Gomes da Rocha não podia lembrar apenas os anjos desaparecidos: dos cem mil combatentes muitos sobreviveram, uns adormecidos, outros magoados, alguns crispados pela incúria e pelo desprezo a que tinham sido votados. A pátria, definhada, voltava a dececionar. O Terreiro do Paço tratava com desdém, rebaixando-a, a simplicidade trágica dos heróis das trincheiras e dos campos de batalha. Como se fossem movidas por linhas paralelas, a má reputação dos poderes públicos opunha-se à credibilidade dos antigos combatentes. Que uniam fileiras para não serem esquecidos e deles não se fizesse caso.
O discurso de António Gomes da Rocha começou a ficar mais circunstanciado. A sua teimosia não era música ligeira para os ouvidos dos nossos conterrâneos. Não bastava fazer cara de caso, era preciso por mãos à obra. Graças a Deus, a delegação da Liga também tinha boas notícias para levar à opinião pública. Na imprensa local, na sua qualidade de porta voz da Liga, António Gomes da Rocha listou os proveitos obtidos pela direção para os seus sócios, quer tivessem sido antigos combatentes quer fossem membros extraordinários, como era o caso dos pais, das viúvas e dos órfãos desses combatentes. Os dois médicos da terra, Joaquim Milheiro e António Ribeiro da Silva, dispuseram-se a dar consultas gratuitas. As farmácias Laranjeira, de S. João da Madeira, e Pereira, da Arrifana, dispunham-se a fazer um desconto de 5$00 nos medicamentos comprados. Os sócios que quisessem ir ao cinema no Teatro Avenida também tinham um desconto nos bilhetes. Para usufruir daqueles benefícios, duas condições muitos simples, em princípio ao alcance de todos: cada sócio devia munir-se de um cartão de identidade, para o que era necessária uma fotografia, e, o que era um pouco mais difícil, manter as quotas em dia. A benemerência tinha nomes concretos, que todos deviam reconhecer: o dos dois médicos, em primeiro lugar; o dos farmacêuticos Durbalino Laranjeira e Manuel José Pereira; por fim, o de Francisco Luís da Costa, o proprietário do Teatro Avenida. O altruísmo tornou os cinco homens sócios beneméritos da delegação da Liga dos Combatentes da Grande Guerra em São João da Madeira. De vez em quando, n´O Regional, publicavam-se listas com os nomes que ajudavam a suportar as contas da Liga.
As coisas passavam muito por aí, pela boa vontade e pela benemerência. E também pelos ecos da imprensa. Os jornais, por vezes, continuavam resilientes: ainda falavam da guerra e das suas consequências trágicas. A própria Liga tinha um jornal, A Guerra, dirigido por Assis Gonçalves e com redação e administração em Lisboa, no número dezoito da Calçada dos Caetanos. Jornais e beneméritos davam as mãos, entrelaçavam os dedos. Eram ambos que ajudavam a garantir o bom resultado de desfiles patrióticos como o que iria ocorrer, na capital, no dia 9 de abril de 1929. A parada, anual, comemorava o desfecho funesto de La Lys e a desgraça dos seus mártires. Em 1929, o desfile tornou-se ainda mais solene, tocante e comovente, com a distribuição de um estandarte a cada uma das delegações espalhadas pelo país. S. João da Madeira também estaria presente, para os companheiros das horas amargas receberem, como distintivo, uma cruz de guerra de primeira classe. Infelizmente, os antigos combatentes eram quase todos pobres ou remediados. Por isso, para que pudessem participar patrioticamente na parada e receber o estandarte, cobrindo as despesas de deslocação de comboio à capital, eram necessários fundos à volta de novecentos mil escudos. António Gomes da Rocha desprezava os insensíveis à desgraça alheia, mortos ou mutilados. Aberta a subscrição para apoiar a viagem a Lisboa, para que o estandarte da Liga pudesse ficar bem ao lado da bandeira concelhia, podia perguntar: Quem faltará com o seu óbolo?
Nessa altura, António Gomes da Rocha não contava, certamente, com a generosidade do médico que gostara de acompanhar Salazar em Coimbra, nas tertúlias do conservador e direitista Centro Académico da Democracia Cristã. Por causa de Byssaia, o quartel da GNR de São João da Madeira reuniu os combatentes e sócios da Liga na terra para protestarem contra Byssaia e o seu desejo de desviar o asilo dos órfãos para um sanatório de combate à tuberculose. A bondade de Barreto para com os seus doentes levou-o em linha reta à construção de um mexerico enganador.
A confusão foi publicada no Diário de Notícias: a de que em Portugal só haveria quarenta órfãos da guerra. Quarenta mortos no país inteiro quando, em São João da Madeira, com menos de quatro mil habitantes, com quatro combatentes mortos, dois dos quais eram solteiros, havia cinco órfãos bem contados: Cândido, Almerinda e Maria da Costa Lima, filhos de António e de Olívia, e Vitorino e Serafina de Sousa, filhos de José e de Emília. Na reunião de 24 de fevereiro os ânimos exaltaram-se e chegou a falar-se em delito propositado. Como era timbre da época, o protesto considerou-se disciplinado, mas ativo. Em causa, numa moção aprovada por unanimidade, estava – escreveu o secretário da Liga – o esbulho que se pretende fazer em prejuízo dos órfãos da guerra. Pela frente, a Liga tinha uma santa cruzada. Para a ajudar, louvava-se a imprensa e apelava-se aos emigrantes no Brasil, a homens como o conde Dias Garcia, saudando-o e pedindo-lhe que não desampare os antigos combatentes no seu justo protesto. Ninguém acreditava nas contas de Barreto, tantas eram as viúvas e os órfãos sem meios de subsistência. O amor à pátria e aos seus heróis desconhecidos levava todos pela corrente.