Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Nos salões mundanos e nos gabinetes por onde foi passando com a delicadeza usual de quem gostava de os frequentar, Renato Araújo tentou dar vida na sua terra natal à Liga dos Combatentes da Grande Guerra. Ainda que tarde, a liga evitara a inação extrema. Retenhamos algumas minudências e as suas rápidas percussões. Em Portugal, a liga fora criada em 1921 e tinha como principal finalidade auxiliar as vítimas físicas e psicológicas da guerra, os soldados, as viúvas e os órfãos. No dia 6 de abril daquele ano, numa manifestação de fervor patriótico, com muito aparato, foram sepultados, no Mosteiro da Batalha, os corpos de dois soldados desconhecidos mortos em combate, um na Flandres, o outro em África. A 9 de maio, finalmente, um pouco tarde em relação ao resto da Europa, nascia a Liga em Portugal. É muito plausível que, por aqueles dias, como se fossem formigas, houvesse muitos portugueses desmoralizados e desavindos. Nem por acanhamento conseguiam evitá-lo. 1921 tinha começado esgotado até à última gota, com as greves do costume, a subida impressionante do custo de vida ou a escassez de produtos; e com mais um governo, arriscado e complexo, o vigésimo nono, que tomou posse a 2 de março e durou até ao dia 23 de maio, quando Bernardino Machado foi deitado abaixo pela GNR e substituído pelo maçónico Tomé de Barros Queirós. Em vida e postumamente, o catedrático Bernardino superou a longa distância a carreira mais modesta de Tomé, que começara a trabalhar aos oito anos, depois de se mudar de Ílhavo para Lisboa. Com jeito para o negócio, Tomé fez-se a si próprio: foi caixeiro, primeiro; comerciante a seguir; depois, autarca, vereador e deputado; sempre em ascensão, até chegar a ministro das finanças. Integrou o partido unionista, rival de Afonso Costa, e, aproveitando os golpismos recorrentes e a instabilidade constante, ocupou o lugar de Bernardino como primeiro ministro, sendo empossado a 28 de maio. Em comum, entre os dois chefes de ministério, mais um governo de curta duração, minado outra vez por uma assustadora crise financeira. Tomé resistiu até ao verão, quando foi demitido a 30 de agosto de 1921.

Elementos da Cruzada das Mulheres Portuguesa junto ao seu estandarte, em 1916

Foi durante o curto consulado de Tomé que nasceu a Liga. Renato Araújo ainda não tinha trinta anos, mas amadureça com a guerra. É tentador imaginá-lo então nas franjas mais prudentes e conservadoras da República; pouco politiqueiro ainda, à espera da cerração de 1926, ainda cabisbaixo e vexado, sem grande preparação para voos políticos mais altos e arriscados. Os meios eram restritos e pouco significativos, mal iluminados, mas imaginamos Renato a ler com entusiasmo a ata da primeira reunião oficial da Liga dos Combatentes da Grande Guerra. Imagino-o até, num derradeiro esforço, a tentar redigi-la com precaução, como uma ferida aberta: Em abril de mil novecentos e vinte e um, e em razão das injustiças feitas aos que na Grande Guerra combateram, especialmente aos mutilados e estropiados, e ainda devido ao desprezo a que eram votados pelos poderes constituídos, os quais não só tomavam na devida conta, mas até propositadamente esqueciam as justas reclamações de muitos, que após haverem cumprido o seu dever, conjuntamente com o juramento que antes haviam feito de darem o seu sangue pela Pátria... Contavam muito as angústias partilhadas, as más consciências, o dia a dia soturno dos mais pobres e miseráveis. E as boas intenções, o intuito de não só pugnarem pelos seus interesses, e de suas famílias, valendo-se de si próprios, mas ainda de erguerem o nome do nosso país lá fora. E foi-se fazendo a cronologia: o primeiro esforço em 1919; mais alguns apoiantes em 1921; os primeiros corpos diretivos em 1923; a oficialização em 1924, com o nome definitivo e os estatutos de Liga dos Combatentes da Grande Guerra...
A Liga só chegou a S. João da Madeira em 1929. Pela mão, entre outros, de Renato Figueiredo. Estava-se em tempo de ditadura militar e dois filhos de Mussolini, acompanhados por balilas, os jovens fascistas, são recebidos por Carmona em Lisboa. Ainda jovem, Cerejeira já era cardeal patriarca e começara, com a lição vinda de Itália, a campanha do trigo, segundo a qual o trigo da nossa terra é a fronteira que melhor nos defende. Salazar continuava ministro das finanças, fazendo tudo para que não voltasse a acontecer déficit nas contas públicas. O seu amigo Mário de Figueiredo, colega de Coimbra e ministro da Justiça, alterara algumas das leis mais anticlericais e laicistas de Afonso Costa, autorizando que os sinos voltassem a tocar nas igrejas e as ruas das vilas e aldeias se enchessem de procissões. 1929 é também o ano em que foi aprovado o estandarte da Liga e autorizada a sua utilização em atos oficiais. Primeiro na rua de S. Paulo, instalada nos escritórios de Faria Afonso, a sede da organização passou, com a nova toponímia, para a rua João Pereira Rosa, num espaço cedido pela republicana e democrática Cruzada das Mulheres Portuguesas, liderada por Elzira Dantas Machado, a mulher de Bernardino. Os soldados envelheceram, alguns tiveram anos suficientes para mudar de vida; outros, desconfiados do ombro amigo, nem se falavam, ou evitavam encontros; nem todos tinham ficado eufóricos com a vitória lusa na guerra...
Mas, para quem se ligou à Liga, contavam muito os propósitos. Adivinhamo-los. O primeiro: promover a exaltação do amor à Pátria e a divulgação, especialmente entre os jovens, do significado dos símbolos nacionais, bem como a defesa intransigente dos valores morais e históricos de Portugal. O segundo: aviventar o prestígio do país, designadamente através de ações de intercâmbio com associações congéneres estrangeiras; promover a proteção e auxílio mútuo e a defesa dos legítimos interesses espirituais, morais e materiais dos sócios. O terceiro: cooperar com os órgãos de soberania e da Administração Pública com vista à realização dos seus objetivos, nomeadamente no que respeita à adoção de medidas de assistência a situações de carência económica dos associados e de recompensa daqueles a quem a Pátria deva distinguir por atos ou feitos relevantes praticados ao seu serviço. Por fim, para que nem tudo ficasse pelo papel: criar, manter e desenvolver departamentos ou estabelecimentos de ensino, cultura, trabalho e solidariedade social em benefício geral do País e direto dos seus associados.
Quando a Liga chegou, finalmente, em 1929, a S. João da Madeira, Salazar andava embevecido com o seu prolixo milagre financeiro. As câmaras municipais do país, incluindo a novinha vereação de Benjamim Araújo, iriam manifestar-se, mais para o final do ano, ao seu lado. Era o tempo da fórmula repetida até à náusea: Tudo pela nação, nada contra a nação. Entre fevereiro e março de 1929, quando os antigos combatentes foram recordados, tiraram-se em S. João da Madeira algumas fotografias. Porque tinham arriscado a vida na frente de combate, tinham morrido quatro soldados da terra na Flandres. Quase todos conheciam a sua história triste e dolorosa. Restaram duas viúvas, a Maria e a Emília de Jesus. A Maria com três filhos pequenos, a Emília com dois. Não era difícil encontrar aquelas crianças pela rua, quase sempre sujas, de boca chupada, com a cara curtida pelo sol. Os antigos combatentes, conterrâneos ou de povoações vizinhas, podiam começar a alterar um pouco o rumo da conversa: estavam todos satisfeitos com a criação, ainda que tardia, de uma delegação da Liga na terra. Havia sempre alguma coisa para dizer sobre aquela instituição patriótica que não tinha outros intuitos que não fossem os da benemerência. Era assim que pensava Renato Araújo ou, talvez ainda mais, António Gomes da Rocha, que andou pelas trincheiras da Flandres e foi o secretário da delegação na terra. Os antigos combatentes iriam continuar a falar, estavam obrigados a fazê-lo, ainda mais, como escreveu um deles, num país onde há uma vergonhosa descrença no futuro da nossa queria pátria. António Gomes da Rocha, antigo combatente e secretário, fará das tripas coração. A dada altura, começaram a ouvir falar dele, exigente e obstinado a preservar o trabalho de campo. A de rogar, suplicar, exigir, sem falsos devaneios, um futuro digno para as viúvas e os órfãos. E a de não esquecer, com alguns devaneios politiqueiros, os que arriscaram a vida na frente...

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