Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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No mês de novembro de 1937 o céu ficou um pouco mais aberto para os soldados chapeleiros mortos na grande guerra. Como se fosse um fim de pesadelo, com muitos incidentes, rostos carrancudos, os olhos semiabertos, repetindo-se fórmulas reverentes e gestos de reconhecimento e comiseração. Não havendo sangue nas mãos, podemos chorar um pouco, pacientes com a gente da família; e passar um lenço pelos olhos, voltar ao trabalho, aos velhos e pausados ritmos familiares, continuar a falar, enfim, com toda a gente na rua... Com algumas bolas a saltar, restava quase sempre alguma ternura. Mas, sem haver muitas queixas, sentimos que persistiam acendalhas, coisas sombrias reaparecendo, perturbadoras, desvanecendo-se nas sombras. Para quem se juntasse na rua, fisicamente impotente, pressentiam-se respirações de mães e namoradas aflitas, com poucas manias nas cores escuras que vestiam; viam-se algumas crianças abandonadas por golpes estúpidos, grosseiros e grotescos.... Estamos todos cansados e há obstáculos nem sempre fáceis de contornar, à distância do ódio, à porta de casa, onde costuma fazer mais calor. Um poço fundo para olhar com o coração aos pulos no peito. Havia na época muita gente assim, consternada. Mulheres deitadas na cama, com teias de aranha, o que podiam receber quando o dia começasse? Fazer o almoço, mandar os filhos para a escola, ficar sentada no banco da cozinha, gaspear? Tapavam-se os olhos, houve quem desaparecesse abruptamente de cena. Ainda hoje não se sabe se falaram com alguém da família. Nunca iria haver um fim certo e determinado para a desgraça dos que sobreviveram, das viúvas e dos órfãos dos soldados que tinham morrido na guerra. Nem tudo tinha sido tratado com esmero e prontidão. Com alívio para o desespero. Deviam vir mais vezes até junto das viúvas e dos órfãos, havia versões diferentes do que lhes caíra em cima. Às escondidas, às vezes cantarolando letras tristes, por terem pagado demasiado. Com tanta pancada seca, não havendo máquina para escrever, houve quem tapasse os olhos com peneira. Com a casa cada vez mais pequena e pudica, o pior ainda podia voltar a acontecer.
A escuridão foi caindo, preguiçosa. Andamos por aqui sem ilusões, se é que as havia, encolhendo os ombros ao deus dará. Fechemos por enquanto os olhos, segurando por instantes a mão da viúva de um daqueles chapeleiros morto na guerra. Aquela mulher, quase rapariga, que ficou com três filhos para tratar, o Cândido, a Almerinda, a Maria. Não sabemos se a mulher, ainda muito nova, está cansada, doente, se vai voltar a pressionar a almofada numa noite mal dormida. Às vezes, Maria encontra-se na rua com Emília de Jesus, uma das companheiras de infortúnio. Emília também tem dois filhos sem pai, o Vitorino e a Serafina. Por mais que a distância entropeça, por mais que não haja um fim para o infortúnio, enterraram-lhes os maridos no frio molhado da Flandres. A pausa é longa, sem brilhantina, inconsolável. Os mortos impelem ainda a vontade de chorar? Acendemos um cigarro amargo, repetindo estupidamente que é o primeiro há vários dias. Não temos de apalpar o terreno, de bater à porta, esperarmos que as viúvas olhem para nós pelo buraco estreito da janela, à espera de homens com ar de borracho, embriagados e estupidificados... Elas sabem quem morreu, sem a consolação de outros tempos. Mas não podemos ir embora, vai lá tu, fico eu por cá... Um compasso, por isso, graças a Deus. As duas viúvas de António e de José tinham quem pensasse às vezes nelas. Nem tudo era indigência, havia gente com escrúpulos, zelosa... Também por elas, para as segurar, foi criada uma organização patriótica e nacionalista. Essa gente assumiu, cripticamente, a proteção dos sobreviventes, das viúvas e dos órfãos de 18. Quase todos tinham ouvido falar recentemente dela, da Liga dos Combatentes da Grande Guerra. Estava tudo tratado previamente. Não se tratava de uma aventura maluca, feita por amigos ligeiros e irresponsáveis, à procura de sucesso fácil. Sem aranhas, a bolsa patriótica entrou pelas casas dos soldados mortos adentro. E também dos sobreviventes, ainda que alguns pudessem estar meios a dormir.
Nos anos vinte, por ação de alguns sobreviventes, surgiu uma delegação da Liga em S. João da Madeira. Eram cinco os órfãos da terra, quatro os mortos na guerra, dois deles solteiros. Por mais maravilhosas que fossem as preces e as orações, honrar os mortos não significava descuidar dos vivos. Olhar para eles, olhar por eles, alquebrados ou vigorosos, sem subterfúgios, sentir a sua proximidade excessiva, os farrapos grosseiros das suas zonas de desconforto. Havia crianças a crescer na rua, sem sapatos, a fugir das mães, molengonas e distraídas nas suas blusas pretas, a arrumar os seus bonecos, qualquer coisa que tinham sem risco à mão de semear. Nem todos ficavam levianos por não encontrar aquelas crianças na escola, ali para os lados da Quintã. O que iriam pensar dos descuidos, da falta de atenção? Quem seria capaz de as tentar apanhar, de explicar as suas reações desconfiadas? De quem é que estávamos, afinal, sempre a falar, sem abrir os olhos? Houve quem, com o seu coração diamantino, enfiando a mão nos bolsos, topasse de frente com a malquerença das viúvas e dos órfãos. Claro que sim, espraiando-se com lucidez, empáticos e sem entorpecimento, eram muitos um pouco por todo o lado, entre os nativos ou os que tinham emigrado pobres, um dia, para o outro lado do mar, voltando mais tarde ricos, muito ricos alguns deles, como o conde ou o visconde. Não havia razão para a vida ser pior ainda, mais ainda para as infortunadas viúvas e os desventurados órfãos dos que tinham morrido na guerra.

Renato Araújo, médico e autarca

E assim nasceu a Liga. Aquela Liga que encontrou num conhecido homem da terra, cheio de ilusões e intenções, um fervoroso admirador. O nosso conterrâneo, de quem se podia dizer ser amigo, percebeu cedo o que aquela Liga pretendia fazer. Havia problemas urgentes para resolver, em favor das vítimas da guerra onde o nosso conterrâneo também tinha andado. Chamava-se ele Renato Araújo, um nome com brilhantina para batizar, um dia, com a ajuda preciosa da mulher, uma biblioteca na terra. Era médico o nosso conterrâneo, filho dileto de Benjamim e de Josefina, a segunda mulher do primeiro autarca de S. João da Madeira. Um seguidor confesso de Salazar, divulgador local dos seus anseios e ideais autoritários. Entre muitos ofícios, que incluíam o amor pelo partido único e a afeição pela legião, Renato foi um dos dirigentes da Liga dos Combatentes da Grande Guerra. O nosso médico tinha nascido nas Vendas, na casa do pai, no dia 30 de novembro de 1892. Deixou a terra natal cedo, adorando viver na capital, gozando as relações que ali depressa estabeleceu. Como médico, Renato esteve na Flandres, nos campos de batalha, ouvindo tossir quem combatia e sofria. Renato não mudou de um dia para o outro. Lisboa não era a aldeia afastada onde tinha nascido e aonde voltaria. Orgulhava-se dos bons ofícios do pai, Benjamim, o primeiro presidente da terra, mas sentia estar à altura de outros voos, caso lhe apetecesse. A política aproximou-o do poder, de ministros como o das obras públicas; sobretudo, do seu diretor geral, o engenheiro Sá e Melo, com quem, chegado à câmara, com bom gosto, arranjaria a praça, o ex-libris, um dia bastante maltratado, da sua terra. A praça, com o nome de Luís Ribeiro, o coração da terra de Renato, o seu centro cívico, por quem moveu influências para ser construída. Recorde-se, pois, a sua história mais institucional: Renato foi, durante oito anos, o terceiro presidente da câmara de S. João da Madeira. Acreditou ser demasiado bom, a seguir ao pai e a António Henriques, os dois primeiros presidentes. Começou o mandato um ano depois de outra guerra, a segunda, terminar. Não gostava muito de conversar sobre ela. Renato não deixou ficar mal quem o precedeu. Revelou-se exímio: um pavilhão desportivo e uma biblioteca são dois patrimónios exemplares do seu trabalho enquanto autarca. Em 1946, apesar do fim da guerra e das aragens democráticas, Renato percebeu que o Estado Novo ainda tinha várias pernas para andar. Se tivesse tempo, em certas circunstâncias, Salazar recebê-lo-ia ao final de cada dia.

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