Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Comovidos, a ponto de chorar? Naquele dia 11 de novembro de 1937, junto à capela de Santo António, os sobreviventes da grande guerra, operários chapeleiros quase todos, estavam com um aperto no peito. Envelheceram, vinte anos tinham passado desde o armistício assinado por Foch, pela Tríplice Entente, e por Ezberger, o representante da Alemanha vencida. O pesadelo, dizia-se a maior tragédia de que rezava a história, era tão mau que as perguntas pareciam impossíveis. Tudo tinha começado mal e muitos queriam esquecer aquele desastre que foi de todos nós, em quase todos os lugares habitados do mundo. Unhas negras, as dos nossos soldados chapeleiros, pernas curvadas e braços anquilosados. Com a memória persistente de uma coisa triste, penosa, dolorosa.... Ficariam algum dia esquecidos os nossos sobreviventes? Com o tempo, nem todas as palavras eram sujas e alguns, integrando as primeiras comissões de festas, tinham estado na origem das festas sebastianinas. A partir de 1919, a população de S. João da Madeira e muitos forasteiros foram-se convertendo aos três dias de finais de agosto, quando imponentes festejos começaram a ser dedicados ao Mártir. Com o tempo, a festa tornou-se no maior festejo da terra dos chapeleiros e dos sapateiros. Em 1922 já se conjugava o nome de S. Sebastião com um grande parque verde, ajardinado e arborizado, com capela, no Monte do Peão.
A recordação dos soldados mortos teve o seu pico nos vinte anos do armistício de Compiègne, com a inauguração solene do monumento aos Combatentes da Grande Guerra. A primeira pedra tinha sido lançada dez anos antes, no dia 11 de novembro de 1928, iniciando uma ideia simples e singela de dois homens empenhados, donos do seu ambiente e zonas de conforto. Renato Araújo, presidente da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, futuro dirigente local do partido único de Salazar, e António Gomes Rocha, o tenente que comandava a guarnição local da GNR, foram os inspiradores da construção de um monumento expressivo da nossa gratidão e da nossa saudade. No jornal local publicou-se, na primeira página, o nome dos quatro mortos a homenagear: Artur da Costa Lima, José Matias de Sousa, Vitorino Joaquim Ferreira e Manuel Alexandre. Quatro mortos a quem era preciso dizer obrigado, guardando-os numa pedra. Tinha de se encontrar o tom certo para não esquecer o dia de finados de cada um deles. O tenente, que gostava de ler e de escrever pequeninas peças de teatro, parece que gostava de evocar Lamartine. Compassado: Esquecer os mortos é esquecer-se a gente de si mesma.
O programa de 11 de novembro de 1928 começou com uma alvorada às oito horas da manhã. Ao som agudo, cadenciado, áspero de salvas de morteiros, que reinou no meio do silêncio, a banda dos bombeiros percorreu as principais ruas de S. João da Madeira. Algumas horas depois, às dez e trinta, a praça de Luiz Ribeiro estava cheia de gente. Antigos combatentes, crianças das escolas primárias, autoridades, funcionários públicos, soldados da GNR, bombeiros de Espinho, da Feira e de S. João da Madeira ocuparam o largo que ficava a norte do Hotel Central. Com as janelas e as varandas das casas à volta ataviadas de senhoras e de meninas, a multidão formou um quadrado em torno do local onde iria ser colocada a primeira pedra do monumento aos heróis da guerra. Benjamim Araújo, o presidente da autarquia, imaginou então o ano de 1935, quando no largo ficou concluída, no mês de outubro, a capela de Santo António. O arco virtuoso da sua terra natal, em crescendo, num tempo e espaço curtos, era urbanizar-se, embelezar-se... A sua saúde frágil não lhe permitiu ver a obra concluída, uma bela capela branca um pouco acima do coreto. Benjamim morreu em julho, no dia 11, quase com oitenta anos, sendo sepultado no primeiro jazigo capela do cemitério mais antigo de S. João da Madeira.
Em 1928, Benjamim presidiu às cerimónias cívicas de homenagem aos mortos na guerra. Comoveu-se às onze horas, quando um morteiro anunciou o começo de dois longos minutos de silêncio, um silêncio de morte, à espera que se curassem as chagas. Conta-se que, durante os dois longos minutos, apenas se conseguia ouvir o som plangente dos sinos dobrando a finados. Num mastro, colocada a meia adriça, flutuava a bandeira da vila, diante da qual os estandartes se inclinavam em sinal de respeito. Conhecemos bem o momento austero pelo jornal da terra, aqueles dois minutos transformados num momento patético de emoção e grandeza. Foram dois morteiros e um toque de clarim que anunciou o fim do silêncio, para que todos se dirigissem à igreja matriz. Uma multidão enorme encheu a rua do Visconde e ocupou o templo onde o padre António Joaquim de Oliveira rezou a missa, rodeado, junto ao altar mor, por muitos bombeiros com os seus estandartes. Ao evangelho, todos queriam ouvir a eloquência de um filho da terra. Como era seu timbre, exaltando o amor à pátria e o sacrifício dos que tombaram por ela, o padre António Maria d’ Almeida Pinho comoveu e arrebatou a enorme assistência. Orações eloquentes, intercaladas com Maria Genoveva Guerra da Silva a tocar discretamente as teclas de um órgão.
Com tanta bravata, as cerimónias estavam para durar. Exacerbavam-se as sensações, tristes e festivas, cada um trazendo consigo as recordações da guerra. Ansiava-se pelo cortejo cívico previsto para a parte da tarde. Eram catorze horas e concentraram-se perto da igreja, junto às escolas oficiais, na Quintã, todos os que iam participar na festa cívica. Estava tudo em ordem, com o cortejo a ser aberto por quatro praças da Guarda Nacional Republicana. Vinham todos a seguir: a banda e o corpo dos bombeiros, garbosos, devidamente fardados e equipados; em duas grandes filas, as crianças em idade escolar, acompanhadas pelos professores e pelas professoras, António Francisco Nogueira, João da Costa Santos, Alzira Leite Ferreira Ribas e Joaquina Nunes Martins; a seguir, mais crianças, estas do asilo de Santo António, com muitas flores, acolitadas pela diretora da instituição, Inês Frutuoso Marques. O cortejo engrossava com os antigos combatentes, formando e marchando militarmente; a seguir, com as forças vivas da vila, os representantes da Associação Industrial e Comercial, da Associação dos Operários Chapeleiros, do Grémio Recreativo Instrutivo, da Associação Desportiva Sanjoanense... Uma multidão de povo logo a seguir, quase na cauda, com as suas modestas e humildes circunstâncias. A fechar, exemplares nas suas fardas, alguns guardas da GNR.
As sentenças podiam ser severas, mas havia quem se lembrasse de que as implicações da guerra não foram iguais para todos. Dez anos antes, houve quem acreditasse que uma guerra como aquela podia ajudar a vender melhor os produtos da terra, como os chapéus, a maior produção da florescente indústria local. Mas, no dia 11 de novembro de 1928, uma década depois do cessar fogo, não valia a pena relembrar certos procedimentos com olhos de desafio. Concentremo-nos nas três bandas de música a seguir pela rua do Visconde até à praça de Luiz Ribeiro. Toda a gente acorria ao largo de Santo António, ainda sem a capela do santo, mas lindamente ornamentado, com mil bandeiras, cordas de cor verde e uma tribuna protegida por colchas de seda. Era a altura dos discursos e Benjamim Araújo, debilitado, alquebrado, começou a dar a palavra aos oradores de serviço. Falou primeiro um advogado, antigo deputado, Silva Lino. Supomos que foi escutado em voz baixa. O segundo orador, sob um céu cinzento de outono, foi mais arrebatador. Era o tenente Rocha, a conquistar a assistência com a sua fé num Portugal maior e com um alvo favorito, as crianças, para que nunca esquecessem os que morreram pela pátria. Renato Araújo e António Henriques foram as últimas figuras da autoridade. Tinha chegado, enfim, o momento certo para lançar a primeira pedra e Benjamim Araújo assinar o seu auto de lançamento.
O documento escrito foi depois guardado com cuidado num tubo de vidro, hermeticamente fechado, e metido numa caixa junto à primeira pedra do monumento. A história ainda estava por acabar.

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