Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Não foi preciso esperar cinco anos para ver que a República era uma frustração. O que tinha sido afinal o 5 de Outubro? Um idílio, diziam alguns; uma desilusão, pensavam outros. Bastaram alguns meses para muitos dos seus protagonistas e antagonistas assumirem o princípio da deceção. Por uma parte, havia quase sempre um lado escuro a guiar a alma do povo português. A pensar em marionetes, João Chagas há muito o tinha escrito: O povo, em toda a parte, é o Povo. Em Portugal é o – Zé. Carinhosamente, o povo era o Zé Povinho de Bordalo, alguém que nasceu no ano de 1875, vestido e calçado de uma vez por todas, criança para sempre, mas, de repente, transformado em soberano no dia 5 de Outubro de 1910. Mas o povo só conseguia caminhar até meio do soalho. De albarda às costas, esperava há demasiado tempo por um D. Sebastião qualquer. O povo gosta, o povo exulta, o povo rejubila – sentenciava Ramalho Ortigão numa das suas Farpas. O povo – dizia Ortigão - não precisava de aprender outros passos de dança: Como o boi puro, o povo não se desilude nunca, nunca se desengana da lide.
Por outra parte, a arreliar os mais puristas, havia a praga da adesivagem. Radiantes e contentes, crescia o número de monárquicos feitos à última da hora republicanos. Por sinceridade ou cálculo, o fenómeno costumava acontecer em todas as revoluções e, pensando bem, ninguém tinha de ser sempre aquilo que sempre fora. De ver o mundo sempre através da mesma cantilena, desempenhando fielmente as suas obrigações, até à náusea. Mas começavam a ser demasiados os talassas, esquecidos do jovem rei exilado e vendo os seus cálculos falhados, a passarem a adesivos, mudando de roupa sem pudor. A praga não largava a porta dos verdadeiros republicanos, desesperados, quase chegando a duvidar se eles próprios ainda eram republicanos... O jornal Os Ridículos, no seu número de 26 de setembro de 1911, tentava ser claro sobre as mudanças de alfaiate: Pergunta-nos um leitor, no caso improvável de um regresso à monarquia, o que fariam tantos adesivos que já estão à mesa da República. Não era preciso ser muito arguto para achar a resposta na ponta da língua: Ora aderiam outra vez, e continuavam a comer.
Um ano depois do 5 de Outubro, eram muitas as vozes que não conseguiam levar a cabo uma boa avaliação da República. Em outubro de 1911, quando inquiriu alguns homens que tinham feito a República, Joaquim Madureira escutou quase sempre respostas rápidas e incisivas. Com as suas barbas grisalhas e os seus chapéus moles, arrancando saudades e esperando que alguém acudisse à tragédia, as impressões eram normalmente tristes e agrestes. Ouçamos Porfírio Rodrigues, um dos inquiridos, a ditar: Escreva: se eu soubesse que a República que tinha idealizado era a ‘porca’ que me saiu, não me tinha arriscado, não me tinha sacrificado, como me sacrifiquei... Havia outros mais generosos, que não se importavam de arriscar outra vez por uma República virada do avesso. Mas não conseguiam, um ano volvido, apaziguar a alma. Eis o marinheiro Soares Andreia a lastimar profundamente que a Revolução seja um facto consumado. Está tudo por fazer... Ou o livreiro da Rua da Prata, Gomes de Carvalho, ainda acreditando ser possível mudar o leito de morte: Se pudesse desmanchava-a para fazer a República que eu julgava que esta seria... Joaquim Madureira alinhou todos estes depoimentos feridos Na Fermosa Estrivaria. Publicou o livro no ano de 1912, concluindo-o com um golpe de finados: Não era isto que todos sonhavam; não era isto o que a todos arrastou ao combate...
Em 1915, escrevendo em S. João da Madeira, as perceções do padre Oliveira sobre a República eram de outra índole. O padre Oliveira cavalgava outra onda, obrigado a aceitar a nova e dura realidade, mas discordando em quase tudo dos desamores de Madureira e dos seus entrevistados pelos rumos da República. O jornal do padre, como se sabe, não morria de amores pela política. Mas havia coisas com as quais não se podia brincar. As suas discordâncias decorriam de três tipos de julgamento relativamente à família, à religião e à propriedade. Era essa a trilogia onde assentavam as bases da discórdia. Constava que Afonso Costa, a eminência parda do regime, invocando um célebre psiquiatra de Rilhafoles num mediático discurso de 1911, prometera acabar com o catolicismo em duas gerações. Como podia um padre de fidelidade inquebrantável suportar homens como Afonso Costa ou Miguel Bombarda, almas gémeas do movimento anticlerical? Repugnavam-lhe, com certeza, a maior parte das disposições da lei da separação das Igrejas do Estado, que os bispos portugueses, num protesto de 22 de maio de 1911, resumiram em quatro palavras sinistras: injustiça, opressão, espoliação, ludíbrio. Os sinos tinham de tocar a rebate.
Quando começou a escrever n’ A Defesa Local, o padre Oliveira continuava inquieto. Como era possível proibir uma criança em idade escolar, que ainda não tivesse comprovado legalmente a sua habilitação em instrução primária elementar, de assistir ao culto público durante as horas das lições? Como era possível castigar os pais que desobedecessem, por ação ou omissão, ao facto atrás proibido? Não o tendo provavelmente lido, o padre Oliveira teria apreciado o relato de Raul Brandão, em outubro de 1911, quando este, vindo do Norte, encontrara muitos padres a comandar bandos populares que marchavam em direção a Felgueiras ou Santo Tirso. Entre olhares desconfiados, padres e povo marchavam com a bandeira da religião, todos a cantarem sem fingimento: Queremos Deus que é nosso rei.... Era verdade: os sinos tocavam a rebate. Do outro lado, Guerra Junqueiro pegava na pena para mostrar como o dia a dia de um padre luso, quase sem exceção, continuava a revelar exíguas e medíocres provas morais: Nós devíamos pôr-lhe a mesa, sem afrontar o peru já trinchado. Vinham todos, porque o padre português não tem convicções. O padre português, em se tratando da barriga, tanto lhe faz que as pessoas da Santíssima Trindade sejam três como trezentos.
Num dia frio do inverno de 1915, o padre Oliveira tinha muitas razões para odiar Afonso Costa e a sua ideia de Deus. Bem podiam os governadores civis pedir sossego aos católicos. Como em qualquer terra da província, pacata e discreta, S. João da Madeira e os seus habitantes dispensavam as obscenidades anticlericais. Na mente de qualquer padre da região estava bem viva a memória das perseguições republicanas, há uns bons quatro anos, ao bispo do Porto, António Barroso. Barroso tinha sido um dos bispos, arcebispos e patriarca que assinaram um texto magoado com quarenta e duas páginas, datado de 24 de dezembro de 1910 e impresso na Guarda, a Pastoral coletiva do episcopado português ao clero e fiéis de Portugal. Sem pedir autorização ao governo, ao seu beneplácito, o documento foi enviado aos párocos para ser lido e explicado por eles nas missas de domingo, no dia 26 de fevereiro de 1911. Mas nem todos os párocos da diocese do Porto obedeceram ao seu bispo, pelo que este, ainda que sabendo da proibição governamental, insistiu na sua leitura e explicação durante o mês de março. Ao intimar os párocos, sob pena de suspensão, a darem conhecimento da referida pastoral aos seus paroquianos, Barroso caiu na ira dos ministros de todas as repartições. Entre estes, estava o inefável Afonso Costa. Nem este, nem nenhum dos outros perdoou Barroso, que deixou de poder voltar a qualquer ponto do território da sua diocese.

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