Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Os nossos soldados, homenageados em 1937, diante da capela de Santo António, não sabiam bem o que era manter limpa uma farda.

Eram dez horas da manhã, dia 11 de novembro de 1937. Tanto quanto éramos capazes de recordar, aquele dia 11 de novembro era a data de um armistício que ficara na história. Assinado dezanove anos antes por figuras insípidas, num vagão restaurante parado na floresta de Compiègne, partilhado por aliados vitoriosos e alemães quase derrotados. Detetadas as vulnerabilidades da Alemanha e dos seus parceiros, encerravam-se, finalmente, as hostilidades na frente ocidental. Encontramos uma fotografia a preto e branco. Uma capela ao fundo, a de Santo António; um vulto negro, de costas, a olhar uma mulher com um corpo caído, consternado, junto ao seu colo. Nuvens brancas, sujas, no céu? Na capela, construída há pouco tempo, uma missa pelas almas dos mortos queridos. O medo tinha passado, a guerra já não era o tema mais importante das conversas, mas a frivolidade não estava na moda. Que podíamos fazer para lá do tributo de S. João da Madeira aos seus heroicos filhos que tombaram nos campos da Flandres e de África? A guerra desaparecera do campo de visão, mas avaliavam-se comportamentos. Os sanjoanenses saíam à rua, ao centro da vila, com um civismo impressionante. Com solenidade, surpreender-se-ia alguém que assim não fosse? Os mortos eram um sussurro, uma dolorosa pena familiar; admitia-se o dó e a compaixão; mas era preciso demonstrar admiração por eles, por todos os que morreram ou chegaram cabisbaixos e feridos da grande guerra.
O fotógrafo de serviço não entrou com a câmara no interior da capela do mais conhecido santo português. Um padre que era um filho da terra, que gostava de tocar violino e que conhecia bem os seus conterrâneos, numa trajetória à qual não podia fugir, rezou a missa dentro da capela. Os gestos podiam ser imutáveis, mas o padre António Maria d’ Almeida Pinho conseguiu tocar no fundo coração dos presentes. Naquela manhã fria de novembro, agora, mais do que nunca, o padre António proferiu uma formosíssima oração de elevado recorte literário. Não havendo necessidade da guerra, que estava para voltar, o padre recordou as suas vítimas. Evocou as suas memórias sagradas, cantou a plenos pulmões. Não era necessária uma espécie parcimoniosa de memória, os mortos não tinham sido abandonados. Estavam todos ali para os recordar, os convocados do CEP, os valorosos soldados caídos no cumprimento do seu dever, em defesa da Pátria. Havia ainda, por ali, quem se recordasse dos comentários e dos apartes de 1917, quando António da Silva Lima, José Dias da Silva, José Matias de Sousa, Manuel Alexandre, Manuel Alves Ferreira ou Vitorino Joaquim Ferreira partiram para a guerra e não voltaram.
Quando o cálice foi elevado pelo padre António, num instante comovente e extraordinário, todos os presentes na missa da capela ouviram o clarim dos bombeiros locais a tocar a sentido. Colocados nos seus lugares, comovidos, ajoelhados, toda a gente ouviu o rufar dos tambores. Os mortos estavam longe, tinham ficado longe. Mas a emoção, com o seu nó, regressou a duas décadas passadas, tantos anos quantos éramos capazes de recordar para ver aqueles soldados mortos e os outros, os que sobreviveram, a partir para a Flandres e para a África. A entrarem, com uma ignorância imatura, atormentados, inseguros, em barcos carregados de gente, como o Boeman ou o Invetor; a largarem de Lisboa, com quase todos os tripulantes enjoados e cheios de saudade da comida da mãe, sem medirem ainda bem o que os esperava com o gosto avinagrado dos picles ingleses. É possível que os que admiravam os recortes mais solenes da história ainda se recordassem de alguns notáveis comandantes, partidários da intervenção de Portugal na guerra. Como aquele Gomes da Costa de futura memória, alto, aprumado, seco, vigoroso, quase sempre nervoso. Um belo exemplar de homem e de militar, diria João Chagas de Gomes da Costa, antes da terrível desilusão. Há informações que se vão juntando, como as da chegada dos nossos bravos a Brest, no meio da neve e da lama, com alguns deles a atirarem cascas de laranja e garrafas vazias aos rapazes que, com pouca simpatia, se juntavam no cais.

Soldados portugueses na guerra

Esperavam-se dias duros, maus de mais para lembrar. A travessia fora dura, tormentosa; os nossos soldados estavam sujos, pálidos, macilentos, quase sempre, constava, mal-acompanhados pelos seus superiores. Todos se queixavam do frio. Numa estação, a de Aire-sur-la-Lys, com os termómetros abaixo de zero, com o inverno a passar, a primavera quase a chegar, alguém pensara neles, nos soldados encolhidos, embrulhados em cobertores, deprimidos moralmente. Acompanhamos João Chagas no seu diário, protegido pelo seu casaco comprido e quente. A ver vamos, sentimo-nos próximos dos nossos soldados e desconfiamos dos seus superiores, de todos aqueles elementos hostis ao imberbe regime republicano. Era como termos de voltar a uma ordem anterior ao 5 de outubro, a sensações áridas e penosas; a erros que alguns consideravam imperdoáveis, como o de manter nas fileiras do exército tantos elementos hostis ao regime republicano. Ouçamos, outra vez, o nosso guia, o embaixador em Paris. João Chagas dixit: Quando a República apareceu nascia um Portugal e morria outro. A República não sepultou este e, ao contrário, procurou ressuscitá-lo, para viver com ele. O resultado viu-se. A monarquia tinha morrido, mas a república parecia pertencer a uma ordem longínqua, inatingível: Cadáveres não ressuscitam. O ar empesta e em Portugal estamos todos envenenados. Que loucura restava praticar, depois deste espantoso erro? Em tempo de guerra, João Chagas não se imaginava misturado com gente hostil, ignorante, com cara de trouxa e pouca vergonha. Em tempo de guerra, queria ser adulto, para recusar meter uma espada na mão destes homens mortos, de alma morta, e dar-lhes o encargo de conduzir aos seus novos destinos o Portugal nascido de ontem!
Quando os nossos soldados do CEP partiram para a Flandres, uns animados, outros desanimados, conforme os dias, havia quem pensasse como o nosso embaixador em Paris. Ninguém se sentia sossegado internamente. A guerra tinha um nome feio, monstruoso, mas havia quem pensasse, olhando para mais longe, se não haveria em Portugal coisa melhor para mostrar lá fora, no teatro dos combates. Os nossos soldados desconhecidos, António, José, Vitorino, todos os outros, tinham partido, voluntários ou à força, para uma guerra sedentária. Vamos encontrá-los à sorte, nas trincheiras, onde se diz que não havia grandes aventuras para correr e muita porcaria para comer. Com dois exércitos em frente um do outro, as emboscadas tinham deixado de ser uma surpresa. A pouco e pouco, os relatos tornaram-se mais percetíveis, um rol de desonra, com inimigos que se espiavam e se aguentavam, cada um a defender a sua fronteira, o lugar mais frequentado pelos suicidas. Como de costume, sem indignação, sem poder fazer nada, todos pressentiam que quem sofria mais eram os peões. Com as temperaturas abaixo de zero, ninguém queria vestir a sua pele.
Imaginamos o seu sofrimento, o de José, o de Manuel, o de Vitorino, que nunca mais voltaram a S. João da Madeira. Encontramo-los nas trincheiras, na lama, na chuva, no frio, no calor sufocante de um morteiro. Nas noites de insónia, sem vinho e com a candeia às avessas. Dizia-se, na altura, que o perigo era tanto maior quanto mais baixo era o posto. Ao contrário de antigamente, ficamos a saber que uma bomba, quando explodia, era muito certeira. Pelo menos para os que não estavam na retaguarda. Consta que nem todos, dormindo com as namoradas, conseguiam ouvir o sibilar de uma bala. Era essa a sorte dos cachapins. Os que conseguiam escapar ao estoirar cantante e rasgado dum morteiro ou duma granada de artilharia. A esta distância, a de 1937, a do dia 11 de novembro, quando o inverno de S. João da Madeira era menos frio que o de 1917 na Flandres, já ninguém se lembrava bem daqueles cachapins. Ou do que eram os perigos de uma trincheira, o estupor dos seus compassos, os pesadelos de noites de indigestão. José, Manuel ou Vitorino não eram cachapins, não tinham aplaudido a guerra. Não eram um bicho que, antes da guerra, alguém conhecera, na sua vulgar forma humana, com chapéu de coco e paletó. Os nossos soldados, homenageados em 1937, diante da capela de Santo António, não sabiam bem o que era manter limpa uma farda. Não tinham vindo fazer a guerra sentados a uma mesa de repartição, não tinham andado pelas estradas da França, um local de desejo, num automóvel veloz. Sem perguntas e sem respostas, acabaram por encontrar diante dos olhos, num lugar exótico, a morte.

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