Ainda a guerra, que começou na Europa e se tornou na primeira à escala planetária, na mais perversa, sangrenta e mortífera. A guerra começou em 1914, mas há muito tempo já se falavam e comentavam as desavenças e rivalidades entre as grandes potências. Naquela época, a inimizade e os ressentimentos entre franceses e alemães eram conhecidas. Em 1871, depois de ganhar a última guerra à França, Bismarck passara a Alsácia e uma parte da Lorena para a posse da Alemanha. Consta que nem todos os alemães se contentaram com aquela vitória suada: numa única batalha, a de Sedan, terão morrido três mil soldados de ambos os lados. Durante uns anos, os europeus optaram por combater um pouco mais longe, com incursões em África, onde podiam vencer com mais facilidade soldados mal-armados e onde as opiniões públicas da França, da Alemanha, da Bélgica ou da Grã-Bretanha não pressentiam, nem sofriam, derrotas ou chacinas excessivamente perturbadoras. Como convinha a cada um, era preciso lutar pelo poder mundial. Havia quem não se esquecesse das lições graciosas da história, incluindo as da calma podre e tardia das fossas comuns. Assim o fez, entre outros, um coronel alemão, Erich von Falkenhayn. No início do século, aquele coronel comparou os alemães que andavam a matar indiscriminadamente gente na China ao terrível Átila, o mongol que tinha dizimado a Germânia. À semelhança dos Hunos – disse o coronel -, que há mil anos, sob a liderança de Átila, ganharam reputação pelo modo virtuoso como vivem na tradição histórica, também o nome da Alemanha se tornou conhecido de tal forma na China que nenhum chinês se atreverá jamais a olhar com desprezo para um alemão.
Em 1914, lá chegou outra vez a guerra à Europa. Havia quem julgasse que depois de qualquer guerra as coisas iam ficar melhores. Num breve resumo, assim andavam as nações: despeitados, os franceses não esqueciam a perda da Alsácia; receosos, os ingleses não apreciavam ver tantos barcos alemães a navegar sossegados nos mares do norte; os alemães, por seu lado, desprezavam os russos – não conseguiam esquecer os desequilíbrios e as ofensas vindos dos tempos de Pedro e de Catarina, os dois grandes – e queriam uma parte da Polónia e algumas terras substanciais no Báltico; os russos queriam ajudar os eslavos do sul sob domínio dos austro-húngaros e, constava então, eram os grandes defensores das minorias ucranianas, rutenas e polacas; os Habsburgo queriam manter tudo na mesma, sobretudo manterem-se imperiais, e impedir que os sérvios chegassem ao mar... Escreveu um dos historiadores da guerra, Martin Gilbert, que temos vindo a seguir: A guerra, se viesse a materializar-se, seria uma irresistível oportunidade para satisfazer desejos longamente acalentados ou para vingar ódios bem nutridos. Começavam a ficar melhor definidos os blocos: a Alemanha, que desconfiava da França, da Grã-Bretanha e da Rússia, juntou-se à Itália e à Áustria-Hungria. Seria nos Balcãs, onde o ocidente costumava chocar com o oriente, os dois muito desconfiados, que a guerra, longa, sinistra, paranoica, iria começar.
Já vimos como um ano depois o nosso cronista d´A Defeza Local a justificara. Não era tolerável o que os alemães nos andavam a fazer em África, a surripiar as nossas terras. Em todas das as pátrias, qualquer patriota, num derradeiro esforço, tinha o direito de se defender e proteger dos horrores de uma invasão na terra que o viu nascer... Não sabemos se João Correia estava a par das novas tecnologias militares que iriam tornar aquela guerra na mais mortífera de todas, em terra, no mar e no ar, com bombardeamentos aéreos e ataques químicos, com poderosos navios de combate, tanques e metralhadoras rápidos e potentes. A ruindade destas armas não era pior do que as que foram usadas em Ourique, em Aljubarrota, em Elvas ou no Buçaco. Uma ideia fixa arrancava da modorra qualquer patriota e homem de bem. Assim o pensava João Correia: Que importa que a morte nos estenda os seus braços descarnados no campo de batalha, se a pátria é feliz? Pátria!... Seguindo um caminho diferente do coronel Erich von Falkenhayn, que não se agastou com o mau feitio de Átila, o mongol invasor e dizimador dos seus compatriotas, o nosso cronista abriu para a claridade o baú da memória. A história da pátria estava solidamente construída: Ide aos campos de Ourique e perguntai-lhes o que fazia o grande Afonso Henriques momentos antes de se bater com o mouro selvagem e numeroso; perguntai ao mosteiro da Batalha o que levou o herói de Aljubarrota a fazê-lo construir; ide ainda a Belém indagar o que faria o grande Vasco da Gama antes de entrar nas naus que tremulavam no Tejo, e que iriam mostrar o valor português.
Em 1915, o sangue da pátria tinha sido entornado em solo africano. A mobilização para a guerra tinha de ser entusiástica. O rancor era grande, não bastava rezar à Virgem. Com tantas lesões, a paz tinha limites: era preciso vingar os nossos conterrâneos que viviam em África. João Correia acreditava que a sua indignada perceção do mundo estava em linha com os factos: Tende fé em Deus e a vitória será certa. Controlada a fricção, apagadas as chamas das fogueiras, protegidas as possessões ultramarinas da pirotecnia inimiga, da sua ganância e barbárie, era assim mesmo, ali num canto recatado da Europa, que se invejava com carinho o amor dos nossos soldados: E como será enternecedora, esses a quem a felicidade sorri lá longe da pátria amada, o ver no topo de um mastro a bandeira que a representa como que o saudando e dizendo-lhe que a pátria ainda vive e com ela o campo onde na infância correra despreocupado e alegre e onde em amenas tardes de estio ouvira o alegre trinado dos pássaros inquietos.
A espada foi desembainhada, mas, infelizmente, Portugal não estava tão bem preparado para grandes vitórias e proezas. Como muitos previram, a vitória, se ocorresse, seria amarga. No começo, por boas ou más razões, nem todos queriam ver os portugueses na guerra. Segundo João Chagas, Afonso Costa agia por pressão. Indo mais ao fundo, por chantage. A chantagem dos do costume, como se vai ver: Os monárquicos, os eunucos do abominável Camacho e em geral todos os reacionários de Portugal não consentem que este tome posição nos campos de batalha da Europa senão com a condição de a Inglaterra formular esse voto, porquanto estão persuadidos de que a Inglaterra não o formulará. Desse ponto de vista, Portugal continuava a afundar-se, doente, reduzido e minado pela influência inglesa. Marchar, pois, apanhar o comboio para o norte, mas só na condição de a Inglaterra o sugerir. Mas não eram só estes que estavam contra a participação de Portugal na guerra. Também o estavam os libertários, que recusavam juntar o povo no mesmo abraço de cumplicidade contra a Alemanha. Terrível mal era a guerra para o povo, o roto, o esfomeado, com que, antes do conflito, ninguém quis solidarizar-se nas suas lutas contra os patrões exploradores e contra os detentores dos géneros alimentícios...
Como se escreveu no jornal A Aurora, sobre a entrada na guerra esse povo nada soube, nada ouviu, nada disse. Entrar ou não na guerra, em pelotões voluntários ou forçados, suplicar o esforço e o patriotismo dos trabalhadores, pôr-nos contra a Alemanha em campos cobertos de cadáveres, ao lado de uma Inglaterra que sempre apreciara as nossas colónias, nada neste conflito entusiasmava os anarquistas. Eles tinham a certeza de que não se deixariam cegar pelas cintilas violáceas do relâmpago da fé numa liberdade duvidosa. Segundo eles, aquela guerra era apenas uma guerra maldita de desforras.