Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Para o nosso cronista João Correia, como para aqueles que se orgulhavam da história lusa, a noção de pátria não podia ser ominosa.

Era preciso saber amansar a fera. Resistir primeiro às suas cutiladas, aos seus grandes traseiros; não ficar em casa depois, preguiçoso e bufo; para conseguir derrotar a fera logo a seguir. Para podermos continuar bem ligados à Europa, onde éramos da periferia, mas tínhamos alguns amigos mais ou menos sinceros à espreita; e para nos mantermos em África, nas duas costas, confundidas, guardando e aguentando o império. Na redação d´A Defeza Local havia quem concordasse com Afonso Costa e recusasse a vulnerabilidade dos cobardes e a sua maneira de ser tinhosa. Nas circunstâncias que se viviam, na Europa e no mundo, os portugueses não podiam continuar nefelibatas. Distraídos, papagaios, a viver nas nuvens. Para o nosso cronista João Correia, como para aqueles que se orgulhavam da história lusa, a noção de pátria não podia ser ominosa. Magnífica, a pátria, ninguém a queria engarrafada num xarope. Mesmo sem a percebermos bem, a sua história estava cheia de vivas e de aclamações. Amá-la estava ao alcance de todos, não eram exigidas demasiadas qualificações nem exibições teimosas de ficcionistas fantasiosos. O mundo era o que era, o que devia ser, irrompendo estridente, por respeito: ter fé na pátria e nas suas gentes... Assim escreveu João Correia, no dia 28 de fevereiro de 1915, na primeira página do primeiro jornal de S. João da Madeira: Sim... a pátria ainda vive, porque os seus filhos seguindo o exemplo dos seus antepassados, daqueles que bem souberam dar o nome a Portugal, confiam nas suas armas e em Deus, nesse poderoso aliado de todos os que defendem uma causa justa. João Correia acreditava que a rédea ia ser solta. No dia 28 de fevereiro de 1915 previa, na primeira página d´A Defeza Local, o que João Chagas escreveria no seu diário no ano seguinte: Aleluia! A agência Wolff anuncia o rompimento das relações diplomáticas da Alemanha com Portugal. Era o dia 9 de março de 1916, o corolário de comportamentos indecentes e perigosos. Em Paris, o embaixador João Chagas foi posto ao corrente dos acontecimentos através de um telegrama, enviado de Lisboa. Com dez palavras: a Alemanha tinha declarado guerra a Portugal...
Esbocemos alguns desses factos através do volume dois do diário de Chagas, publicado em 1930. No dia a seguir à declaração de guerra, João Chagas sentiu-se embaraçado com a parca mensagem do ministro português do exterior, que não esclarecia nem precisava a origem do conflito diplomático com a Alemanha. No dia 10 de março, Chagas sentiu a sua missão numa toada difícil. Às seis da tarde, dirigiu-se ao Quai d´Orsay para dar conta aos franceses do telegrama do seu chefe. Recebido por um antigo embaixador da França em Berlim, num encontro curto, apercebeu-se rapidamente de que o francês estava melhor informado do que se estava a passar em Lisboa. Mas não era difícil prever que, no dia seguinte, a imprensa de Paris iria embandeirar em arco em honra do novo aliado. A bandeira portuguesa foi então orgulhosamente hasteada na avenida Kléber e Chagas lá teve que voltar, por volta do meio dia, sob um forte nevão, ao Quai d´Orsay. Encontrou-se com o chefe do governo francês num gabinete sumptuoso. Não tinha sido grande coisa. Recebi o aperto de mão de Briand, - conta Chagas - ouvi-lhe aquelas expressões de cortesia e cordialidade que saem da sua boca como da garganta de um ventríloquo. Voltou a não ficar muito tempo no palácio, mas ainda se cruzou à saída com o embaixador de Inglaterra. Um encontro perturbador para quem era mais fraco. Quando lhe aperta a mão, o inglês me pergunta misteriosamente se tomámos as nossas precauções no Tejo. Felizmente, o almoço de Chagas num palacete magnífico da avenida Van Dick, pertença de José Reinach, correu muito melhor. Sobre o ambiente mundano, em tempo de guerra, assim escreveu João Chagas: Muita gente a almoçar – talvez vinte pessoas, deputados, senadores, senhoras, a Madame Lockroy, o Júlio Roche. Reinach quer escrever sobre Portugal no ‘Fígaro’. Pede-me informações sobre a origem do conflito. Portugal tratado amigavelmente no ‘Fígaro’ é uma das surpresas da guerra.
Os dias a seguir à declaração da guerra são febris para o nosso embaixador em Paris. Portugal, perdida a prudência com tons róseos, estava em plena voga. Ainda no dia 11 de março, quando chega ao hotel, Chagas encontra um convite da condessa Greffulhe para o seu próximo domingo e, na sala de jantar, o Anatole France vem apertar-me a mão, felicitar-me pela entrada de Portugal na guerra. Com tanto frio e tanta neve, Chagas mal se aguenta de pé com a gripe. O telefone não para de tocar, os convites para almoço também não. Portugal tinha entrado, finalmente, pela primeira vez, nas reuniões da Entente. Sim, a pátria ainda vivia. Na altura de ingressar na Entente, uma confissão emocionada do embaixador: Espero este momento há cerca de dois anos. Acontece-lhe, porém, algo de estranho, como se estivesse fora da moldura: no almoço do Quai d´Orsay, no dia 13 de março, sente-se frio, impassível, indiferente. Seja como for, não ficou amuado, numa brisa caprichosa. Chagas acreditava que Portugal estava a viver o mais alto momento da nossa história. Longas palavras sobre o curso vivo dessa história: No destino das nações, como no dos homens, há cumeadas. Para Portugal esta é uma delas. Ao subir esta manhã as escadas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Portugal subia a uma das eminências da sua história. Ia bem gripado, coitado, e com uma ponta de febre, e a minha emoção, talvez, por isso, era nula. O certo é que pude verificar deste modo que nada nos comove menos do que a história, quando somos nós próprios que a fazemos. João Chagas ficou obviamente personagem desta história; que, como todos sabemos, ainda teria muito para contar.
Um pouco mais de um ano antes destas páginas do diário de João Chagas, um outro João tinha escrito no primeiro jornal de S. João da Madeira a sua versão desta história e desta pátria. A ladainha podia ser cem vezes repetida. João Correia ainda desconhecia o futuro, mas deixou-se inebriar pelas lições do passado e pelo valor da pátria. Evocar ambos não era atirar poeira para os olhos. Sobre a segunda, havia algo que queria dizer para deixar os seus leitores a procurar candeias. Sigamo-lo, pois, com a força da paixão: Não é raro ouvir-se esta frase revoltante e denunciante da estupidez de quem a profere: Que me importa a pátria? Pois quem ficará de braços cruzados olhando com indiferença um exército invasor que nos venha matar a família, abater o nosso lar e a torre da nossa igreja? Era provável que todos acertassem na palavra exata: Ninguém! A pátria era uma ideia excessivamente maiúscula, não era uma teima idiota, pueril. Não era bonito ver os seus destroços, bater baixo, tornar-se um cadáver. Num tempo tão convulso, todos, mas todos, irão, embebidos no mesmo sentimento, esquecendo rixas partidárias ou pessoais, fazer sentir aos assaltantes da pátria qual é o valor do soldado lusitano. Para assumir um desiderato destes, era bom lembrar, não esquecer nem ignorar, as lições da história. Era fácil acertar em alguns dos lugares mais exatos e malhar nos derrotados: os mouros de Ourique; os castelhanos de Aljubarrota; a duquesa sofrível dos quarenta valentes do 1 de dezembro; os melhores generais do poderoso Napoleão... Ninguém podia esquivar-se airosamente, sem remorso, a esta herança e às suas vitualhas. Porque à pátria e à sua história ainda se juntava uma força desmedida que, nos bons e nos maus momentos, sempre esteve ao nosso lado. Como se imagina, o nosso conterrâneo estava a pensar em Deus. Sempre que chegava a altura, em todas as ocasiões, cansados de discussões e estilos de vida inúteis, havia Deus. Era Deus quem nos permitia não nos sentirmos nem assustados, nem fragilizados ou enfraquecidos. O nome de Deus – escreveu João Correia – está estreitamente ligado a todas as glórias com que se orgulha o povo português. Quem quereria, ousaria abandonar esta companhia?

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