Chegados ao ano de 1915, com as brigas entre alemães, ingleses e franceses podiam os portugueses pouco. No concerto das nações, de semblante carregado, resignado, as nossas conversas e exigências acabavam quase sempre com alguma incomodidade. Com um pouco de esforço, vendo a desproporção das armas, parecia um pouco infantil querermos entrar na guerra. Não obstante, arrancados à modorra, intuitivos e combativos, políticos como Afonso Costa ou António José de Almeida sabiam que era impossível Portugal ficar fora do mapa. Preocupados, tortuosos, não sabemos com rigor à espera de que galardão para ficar guardado na pátria. Mas, por um lado, não podíamos deixar de viajar como europeus; por outro lado, não conseguíamos dormir a pensar que, na nossa sombra, iríamos perder bocadinhos consistentes do que restava das nossas colónias em África. Imaginamos Afonso Costa, entalado, a desenrolar um mapa da África austral e a tentar tirar ilações. Ficou impressionado com as operações e os ataques sibilinos dos alemães em Angola. Não pensou duas vezes. Apesar dos violentos ataques dos anarquistas e da resistência forçada dos monárquicos, a guerra, pois então, era dela que se falava cada vez mais.
Ainda em 1914, quando subiam muito as rendas de casa e os preços do pão e a carestia de vida provocavam assaltos às padarias e tumultos por todo o lado, soldados portugueses partiram para Angola e Moçambique. Para evitar males maiores, a 17 de novembro, no Teatro da Rua dos Condes foi proibida uma revista pouco abonatória do exército português. As várias intentonas levaram a mais uma queda de Afonso Costa. Pimenta de Castro, a mando de Manuel de Arriaga, começou a governar em ditadura no dia 25 de janeiro de 1915. Era o ano do lançamento, no final do mês, em S. João da Madeira, do seu primeiro jornal. O tema da guerra seria recorrente n’ A Defeza Local. Na página três do número um chamava-se chacais aos prussianos e glorificava-se mais uma página de ouro da nossa história. Atacados de surpresa, traiçoeiramente, os soldados lusos tinham sido briosos em África. Diante de um exército muito mais numeroso, nem por isso um punhado de valentes deixou de cumprir nobremente o seu dever. O cronista d´A montanha, transcrito, media todas as palavras relacionadas com a maldita Alemanha e com os alemães megalómanos, esse monstro de milhões de cabeças, que vem praticar o mais nefando crime de que reza a história através dos séculos. Brutais e criminosos, esperava-se que não tivessem descendência. Porque a hora da desforra, a de todos os povos cultos da Europa, haveria de soar, fazendo pagar caro a infâmia que andava a envergonhar a história da humanidade.
Naqueles anos trágicos, o nosso fumo e o nosso fogo dispensavam os floreados: Não tiveram os nossos heroicos soldados o prazer da vitória, nem por isso a pátria está menos reconhecida à memória dos que morreram nem menos grata aos que ficaram vencidos. Em 1915, todos sabiam quem causou, desencadeou e provocou a guerra. Mas, não sendo a guerra uma surpresa, havia quem procurasse evitar a pândega. Nos finais de fevereiro, por exemplo, uma colaboradora anónima do jornal tentou tirar das ruas de S. João da Madeira os festejos carnavalescos. Num mundo em guerra, no meio da devassidão, do crime, das ruínas e da morte, o Carnaval de 1915 teria que ser uma coisa muito, muito impercetível. Não havendo paz no mundo, havendo mal no mundo, com as imagens reveladas do luto de pais, de irmãos, de parentes ou de amigos, que se evitassem os desvarios tontos. Por contraponto, apontava a dedo a colaboradora: a alegria bem comida e bem bebida, as brincadeiras impróprias, a música ruidosa, não se coadunavam com a agonia lenta dos campos de batalha; com as bocas dos canhões, dos canos das espingardas, das pontas das baionetas; e com as enxurradas de sangue que, tragicamente, os alagavam...
Depois de, no verão de 1915, ter caído de um carro elétrico, numa queda que lhe provocou uma fratura no crânio e um receio crescente dos atentados bombistas, Afonso Costa haveria de regressar ao poder. Em fevereiro, quatro dias depois de Portugal requisitar os navios alemães para os por ao serviço da nossa aliança com os ingleses, um cronista d’ A Defeza Local encontrou bons pretextos para apoiar os que, como Afonso Costa, entendiam que o melhor era Portugal entrar mesmo na guerra. O cronista chamava-se João Correia e, ao lado da fotografia de um homem ilustre da terra, António Dias Garcia, escreveu o texto Defendemos a Pátria. Este era um dos melhores nomes de todos: a pátria... Com uma guerra medonha, a pátria estava em apuros. Por ela, pela pátria, todos deviam acordar cedo, com sonhos molhados... Na tragédia, o nacionalismo tornava-se nostálgico e saudosista, quando a pátria era grande e o nome de Deus estava estreitamente ligado a todos os momentos de glória de que se orgulhava o povo português. Porque a palavra pátria, dixit João Correia, reúne em si todo o carinho e bondade, é a que melhor se pode comparar a mãe, à que primeiro aprendemos a balbuciar.
Sendo todos nós sensíveis a palavras femininas, palavras honradas, doces e meigas, como mãe ou pátria (ou paz também, um outro belo nome, uma palavra grandiosa para outro redator do jornal, Quintans Lima Braga), todos ficávamos envergonhados e assustados com a guerra. Ela era a negação do alto grau de civilização a que se tem elevado o espírito humano. Mas, desde os tempos mais remotos, por todos os lugares e países, quase todos reconheciam que a guerra se torna sempre justa e até simpática num povo que se defende. Quando as coisas não corriam bem, quando nos confrontávamos com um inimigo externo, era de enaltecer todo aquele que, para evitar os horrores de uma invasão na terra que o viu nascer, deu a vida nos campos de batalha, cumprindo o seu dever de bom patriota, de homem de bem. O nosso cronista dava-o como certo: em 1915, à espera de uma declaração de guerra, ninguém podia ficar quieto. Tinham razão Afonso Costa ou António José de Almeida. Não custava muito perceber porquê: Quando a pátria nos chamar não hesitemos um momento, corramos de fronte altiva; e se uma bala perdida nos prostrar no campo da honra, lá fica a pátria para nos chorar com gratidão, e a própria terra onde formos jazer será carinhosa para connosco. Porque a ela, à pátria, como uma segunda mãe, tudo devemos; porque a ela devemos amar sempre...
Quando João Correia escrevia aquelas palavras a guerra ainda estava longe de nós, com ataques traiçoeiros e despropositados às nossas joias africanas. Ainda nenhum português, incluindo alguns naturais de S. João da Madeira e das terras à volta, tivera que partir para o norte da Europa para podermos ficar com as nossas terras em África. Talvez não fosse surpreendente a arrogância alemã. Uma boa dezena de anos antes do golpe de 28 de maio, Gomes da Costa relatara o que se tinha passado em Naulila, na margem esquerda do Cunene, Angola. Era o dia 18 de outubro de 1914, quinze horas, quando o alferes Sereno chegou ao acampamento dos alemães, que o informaram vir em perseguição de um soldado desertor. Conta Gomes da Costa que os alemães tinham estranhado que os portugueses fossem empreender operações contra os indígenas naquela época do ano. O alferes português ainda tentou ser simpático, convidando os alemães para almoçar. Foi então que um soldado avisou o alferes Sereno, à espera do almoço, que os alemães estavam a tentar atrelar os cavalos. Tinham perdido a vontade de comer. Na confusão que se seguiu dispararam-se alguns tiros. O doutor Shultze caiu morto, tal como o veterinário e um tenente do exército. O intérprete foi preso, os restantes soldados conseguiram fugir. Segundo Gomes da Costa, ainda havia qualquer coisa para tentar explicar: porque mandaram os alemães enfrear os cavalos e se apressaram a montá-los, interrompendo o almoço?