A guerra, como os tremores de terra, torna-nos mais histéricos e desvairados. Emoções, sensações, perceções desordenadas, quase tudo cai a pique com o número de baixas entre vencedores e vencidos. Morria-se muito ontem na boca dos canhões, no cano das espingardas ou na ponta das baionetas; mas hoje, com o nível tecnológico, letal, do armamento e com o fluxo da comunicação visível e invisível, não são menos confrangedoras, patéticas, as imagens dos conflitos, dos agressores e das suas vítimas. Franzindo o sobrolho, quando a guerra fica mais perto das nossas casas, quando podemos ver mais distintamente as ruínas e os destroços, as cidades e as aldeias desfeitas, os combates ainda baralham mais as nossas andanças desatinadas. Nos nossos dialetos de origem, no centro da gravidade, habituamo-nos a soltar palavrões irritantes. Quando ainda não estamos demasiado cansados com as discussões e os lamentos, a guerra alerta-nos para o nosso lado mais generoso e apaixonado, afundando-nos ainda mais nas nossas poltronas desconfortáveis e fingidas. Com a guerra, aldeias e cidades não ficam mais belas vistas a partir do céu. O sol continua a brilhar, mas seja em 1870, em 1914, na guerra dos cem anos ou na dos seis dias, nos nossos dias, com a guerra, a obscuridade é profunda, as cortinas remendadas num estilo triste e sem sentido. Na histeria dos combates, podemos matar o inimigo, estragar-lhe a vida, podemos continuar a odiá-lo, mas não temos a certeza se valerá a pena manter a ideia perversa que dele temos.
A segunda guerra indicada atrás, a que começou em 1914, foi terrível. Dia e noite, paranoica, como acontece com as outras guerras todas. Todas elas colocam em perigo destrutivo a sensibilidade à flor da pele de crianças, mulheres e homens. Para quem se habitou a ler, no início de 1915, o primeiro hebdomadário de S. João da Madeira, depressa teve notícias de uma guerra que ainda estava muito longe das nossas beiras sossegadas. Os mais atentos podiam observá-la, com pouca diferença de fuso horário, na distância de Angola. Logo no primeiro número de A defesa local, de 31 de janeiro, a página três copiou o portuense A montanha para falar dos ataques alemães, traiçoeiramente e de surpresa, à nossa joia em África. A partilha das nossas colónias, a divisão em esferas de influência económica desses territórios, era um desejo antigo dos alemães e dos nossos aliados ingleses. Antes da guerra rebentar, como disse o príncipe Lichnowsky, os alemães contavam ficar com toda a Angola até ao meridiano de 20 graus, com as ilhas de S. Tomé e Príncipe ou com o norte de Moçambique até ao Licango. A propósito da partilha, dizia o príncipe alemão que, para melindre dos belgas e dos franceses, em todas estas negociações mostrou o governo inglês a maior consideração pelos nossos interesses e pretensões. Sendo Portugal tão dependente da Inglaterra, acreditava o príncipe na boa vontade do rei Jorge para que o acordo ficasse concluído o mais rapidamente possível.
Pouco tempo depois rebentou a guerra e as coisas foram-se mantendo, compassadamente, no pé em que estavam. Sentindo que pertenciam a mundos radicalmente diferentes, Alemanha e Inglaterra viraram as costas. E começaram a tentar fortalecer-se com a guerra, cada uma à conta da outra. O governo português, desde o começo do conflito, abandonou a neutralidade para se por ao lado dos inimigos do império alemão. Seguiu assim uma tendência considerada deplorável pelos alemães: permitiu a passagem de tropas inglesas por Moçambique; proibiu a seguir o abastecimento de carvão a navios alemães; consentiu depois que a Madeira fosse utilizada pela Inglaterra como base naval; vendeu, enfim, canhões e material de guerra aos países da Entente... O governo português, diziam os alemães, deixou de discernir: começou não só a enviar expedições hostis a África como se atreveu, em 19 de outubro de 1914, a atrair o comissário Schultz-Jena até Naulila, com alguns oficiais e praças, para os prender a todos sem motivo justificado. Consta que, quando aqueles alemães procuraram fugir, foram mortos alguns a tiro, sumariamente, e os restantes feitos prisioneiros. Friedrich Von Rosen, embaixador alemão em Lisboa, protestando junto do ministro dos negócios estrangeiros, Augusto Soares, fez um resumo das provocações lusas: A imprensa e o Parlamento, durante todo o decurso da guerra, entregaram-se a grosseiras ofensas ao povo alemão, com a complacência, mais ou menos notória, do governo português. O chefe do partido dos evolucionistas pronunciou na sessão do Congresso, de 23 de novembro de 1914, na presença dos ministros portugueses, assim como na de diplomatas estrangeiros, graves insultos contra o imperador da Alemanha, sem que por parte do presidente da Câmara, ou dalgum dos ministros presentes, se seguisse um protesto. Às suas representações, o enviado imperial recebeu apenas a resposta que no boletim oficial das sessões não se encontrava a passagem em questão.


O discurso de António José de Almeida, o chefe dos evolucionistas, seria publicado no jornal que apoiava a sua fação, o República. O futuro presidente da República, decalcando ideias antigas, imprimiu-lhe cor e ideias fixas. Pondo-se ao lado de Afonso Costa e da entrada de Portugal na guerra, Almeida fez uma triagem rigorosa do que as circunstâncias impunham: A Inglaterra carece do nosso auxílio e reclama-o. Só há para nós uma solução: dar-lho. Claro que abster-se da guerra era a solução que Portugal devia desejar, a situação tranquila de quem não entrasse na sinistra fornalha que a ambição dos homens acendeu. Mas, como gostava de dizer o homem de Penacova, não nos podíamos enganar com peripécias ilusórias: Vamos até onde for preciso, mas sendo preciso! Em novembro de 1914, quando eram ainda muitos os que não queriam Portugal envolvido nos combates, Almeida entendia que se tinha chegado ao desfecho lógico dos acontecimentos: Vamos para a guerra, visto que é preciso ir para ela. E assim foi. Um país desmantelado, coberto de dívidas, com as arcas do tesouro vazias, com uma indústria atrofiada e uma agricultura difícil, com um exército diminuto e sofrivelmente armado, um país depauperado e exausto – as palavras são quase todas do eloquente António José de Almeida –, esse país começou a preparar-se para mandar um contingente capaz de levantar alto a bandeira verde rubra. Ao lado da Inglaterra, certamente, num dueto bem conseguido.
Bílis negra, a guerra foi naturalmente excessiva. Vamos seguir António José de Almeida ainda antes dos soldados portugueses partirem para o norte de França. A contenda ia ser sangrenta, dolorosa, bárbara; na podridão das trincheiras, ia ser deplorável, cruel e lixada. Mas as coisas eram o que eram. Foi preciso escolher o lado certo em detrimento do lado errado. O diplomata Friedrich Von Rosen, filho de um orientalista e orientalista também ele, pensava melhor o mundo sem tipos dúbios como o deputado Almeida. A propósito da guerra, as palavras do evolucionista eram desadequadas e perigosas, impróprias, particularmente ofensivas para um alemão que passara algum tempo agradável e sereno em Lisboa. Registemos umas breves bicadas de Almeida ao belicismo germânico, à sua maneira enviesada de pensar: Desencadeada por um criminoso vulgar a quem o destino pôs na cabeça uma coroa de imperador, ela tem sido conjuntamente uma guerra de traição, de espionagem, de cobardia e de crueldade. Desvario, a guerra, de um bêbedo doente e minado? O nosso orador era exacerbado e gostava que o ouvissem dono do seu ambiente. Estava na tribuna para iluminar, para aconselhar a intervenção espontânea do seu país na guerra. Acompanhemos o ditado, longo e conseguido: Atraiçoaram-se os tratados, que a chancela alemã rubricava, galgando por cima da pacífica Bélgica; espionou-se dolorosamente em todos os recantos do mundo a boa fé dos povos livres para os assaltar no momento em que eles estavam dormindo, convencidos da lealdade alheia; cobardemente se agrediram povos fadados para os mais amplos destinos, praticando nas suas gentes atentados sangrentos que repugnam à consciência dos homens; cruelmente se maltratam indefesas protegidas pelos mais altos princípios da civilização do nosso tempo e de maneira tão bárbara e selvagem que os próprios sábios militarizados da Alemanha não tiveram pejo em sancionar implicitamente essas infâmias cobardes, dizendo-se possuidores, contra certos povos, de um ódio elementar. Da guerra, das suas ideias fixas, dos seus vómitos de sangue, da sua tristeza e disparates, era melhor nem falar. O governo, com alguma certeza, iria conduzir--nos com acerto. Esperando que, no fim da contenda, saíssemos mais ou menos ilesos...