Opinião

O dilema da saúde

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O Governo está a destruir o SNS e está a fazê-lo em nome do negócio privado e de uma obsessão orçamental irresponsável. 

No fim de semana passado, as urgências foram encerradas ou comprometidas em: Viana do Castelo, Póvoa do Varzim, Chaves, Braga, Barcelos, Vila Real, Matosinhos, Penafiel, Santa Maria da Feira, Aveiro, Viseu, Guarda, Vila Nova de Gaia, Figueira da Foz, Leiria, Tomar, Caldas da Rainha, Santarém, Torres Vedras, Lisboa, Barreiro, Almada, Amadora e Portimão.
O maior hospital do país - o de Santa Maria, em Lisboa - não dispõe de serviço de obstetrícia desde agosto: a razão alegada é a realização de obras que, três meses depois, nem foram iniciadas. Entretanto, um grupo privado passou a ser pago para prestar uma parte deste serviço.
Semana após semana, por todo o país, há responsáveis de serviços que se demitem. O SNS está em rutura e não é por incompetência do Governo. O governo vê o que toda a gente vê, sabe o que toda a gente sabe. O Primeiro-Ministro repete-se sobre os milhões que transfere a cada ano para o SNS, mas sabe perfeitamente para onde vai grande parte desses milhões. E sabe também que pagar aos privados sai muito mais caro ao Estado do que ter a sua própria capacidade instalada.
Sai mais caro contratar à tarefa do que assegurar carreiras aos profissionais de saúde. Sai mais caro pagar horas extraordinárias do que assegurar carreiras aos profissionais de saúde. Sai mais caro contratar fora do que pagar as máquinas que equipam o SNS. Quando o governo de Durão Barroso negou equipamento de radioterapia ao Hospital do Algarve e entregou o serviço ao Joaquim Chaves, os utentes ficaram nas mãos dos privados e, como  o serviço  ficava mais caro cá do que do outro lado da fronteira, a radiocirurgia passou a ser feito por um privado em Sevilha. Hoje o centro hospitalar ainda não tem radioterapia.
A maioria absoluta escolhe o ridículo para lidar com o bloqueio do SNS. Depois de instalar um “CEO” (que está por um fio, depois de meses sem dispor sequer de um estatuto que o enquadre), o Governo cria agora os “SNS awards” para premiar a excelência. E quem nomeou para o prémio de capacidade de gestão de equipas e liderança? A responsável pelo encerramento da maternidade do Santa Maria, que enviou grávidas para o privado e levou à demissão sete médicos obstetras do serviço. Um SNS Award!
Como se explica então esta teimosia que arruina o SNS? Não é incompetência, é uma escolha. O Governo escolheu inundar o SNS com gastos extraordinários para não assumir que estas necessidades são permanentes e assim abrir a porta ao negócio da saúde privada.
Acontece que os gastos extraordinários significam pior serviço e profissionais exaustos, sobrecarregados e sem qualquer horizonte de mudança. Enquanto se desdobra em elogios ao SNS, o ministro Pizarro ataca os seus profissionais, forçados a 12 milhões de horas extraordinárias em 2023, só até agosto. Há uma geração de médicos hospitalares que, em 2022, trabalharam em cima do seu horário legal, horas extra equivalentes a mais 4 meses e meio de trabalho adicional. Isto viola a lei e é desumano, mas tudo o que o Governo lhes oferece é a possibilidade de ganharem um pouco mais - se aceitarem ainda mais trabalho extraordinário ilegal.
Face à recusa dos profissionais, em nome dos seus direitos e da qualidade do serviço que prestam aos utentes do SNS, o governo tenta virar a opinião pública contra médicos e enfermeiros, tal como há muito vem fazendo com os professores. Dividir o país, para reinar no desastre.
No centro do Orçamento do Estado cujo debate agora se inicia estará este dilema: manter um excedente orçamental para Costa e Centeno irem exibir em Bruxelas ou, ao invés, assumir que precisamos de mais e melhores cuidados de saúde, geridos responsavelmente a partir de um serviço público com estrutura técnica e profissional adequada. A caminho dos 50 anos do 25 de abril - que garantiu, pela primeira vez na nossa história, o acesso universal a cuidados de saúde -, só a segunda opção é aceitável.

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