Há problemas enormes que nunca dão grandes notícias. Muitas vezes afetam pessoas que vemos todos os dias, que cumprimentamos de manhã e ao final da tarde, que trabalham mesmo ao nosso lado com gestos que já sabemos de cor. E no entanto, esses enormes problemas não chegam à praça pública e, apesar de tão próximos, passam-nos ao lado, como as pessoas que os vivem.
Um desses problemas atinge largas dezenas de milhar de trabalhadores dos serviços de limpeza e da vigilância. Ao longo de anos, desempenham funções ao serviço do Estado, em hospitais, transportes, lares de idosos, nas portarias de repartições, ministérios, autarquias. Mas há muito que o Estado deixou de considerar estas pessoas como trabalhadores essenciais e os seus postos como necessidades permanentes. E foi com esse falso argumento que deixou de as contratar como parte da Função Pública e aprovou uma lei para obrigar à sua contratação através de empresas privadas selecionadas por concurso.
Ao longo do tempo, a cada concurso, estas empresas vão transmitindo entre si as pessoas. Elas não são substituídas nos seus postos, mas as empresas que lhes pagam vão mudando. Não tem intrigado os ministérios que, estando estes trabalhadores a acumular antiguidade, as empresas que vencem os concursos consigam propor preços sempre mais baixos.
Quem quiser perceber o mistério pode ouvir os trabalhadores que, só na última semana, têm parado para denunciar a atuação de algumas destas empresas: retenções de pagamento de lay offs e horas extraordinárias na Universidade do Minho (KG Services), cortes nos subsídios de refeição, transporte e de risco no Hospital de São José (Sá Limpa), salários em atraso na CP, Infraestruturas de Portugal, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Ambiente e Jardim). A regra do setor é a redução de todos os custos laborais, com pressões próprias de negócios obscuros e não do trabalho com direitos ao serviço do Estado. No caso da já referida Ambiente e Jardim e de outras empresas dos mesmos donos, multiplicam-se as acusações de incumprimento dos descontos dos trabalhadores à Segurança Social ou de atraso no pagamento de salários. Segundo a imprensa, o Ministério Público já acusou estas empresas, em 2014, de lesar o Estado em mais de 5 milhões de euros em esquemas fraudulentos. Mas elas aí continuam, cobrando os seus contratos de prestação de serviços e abusando dos trabalhadores.
Em suma, o Estado criou um estatuto de segunda categoria para uma parte dos seus trabalhadores, entregando-os a empresas privadas de limpezas e vigilância, e recusando responder pela qualidade do seu emprego. No Ministério do Trabalho, as empresas privadas de vigilância violaram abertamente a lei ao não reconhecerem os direitos dos trabalhadores no momento em que os transmitiam entre si. Sob pressão dos sindicatos e do Bloco de Esquerda, o Ministério acabou por agir contra estas práticas. Mas essa é uma exceção (talvez por ser uma ilegalidade cometida dentro das portas do prṕprio ministério do Trabalho...) e outras situações graves que ocorrem noutros ministérios continuam sem intervenção do governo.
Destes casos foram dadas notícias pequeninas, das que passam pouco e depressa na comunicação social. Mas o problema é enorme: temos um gueto laboral instalado no seio do próprio Estado. As lutas destes trabalhadores em “outsourcing” aí estão, para contar a história de grandes negócios feitos com métodos de vão de escada, prejudicando dezenas de milhar de pessoas que recebem salários muitas vezes abaixo de quaisquer outros da função pública.
Não é normal que estas funções, essenciais e permanentes, sejam transformadas pelo Estado em reservas de negócio para empresas privadas cuja especialidade é emagrecer os salários. Impõe-se que estes trabalhadores deixem de ser abandonados, longe dos seus direitos, precisamente por quem os deveria proteger. O que se impõe é mudar a lei e que o Estado reconheça e enquadre os trabalhadores e trabalhadoras que o servem na limpeza e na segurança.