Opinião

Nem (só) de democratização se fazem políticas culturais

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Se a democratização da cultura parece um modelo de políticas culturais bondoso, importa talvez salientar que o país onde surgiu o primeiro Ministério dedicado exclusivamente a Assuntos Culturais (França) foi o mesmo que, já na década 80, teve críticas a esse modelo, que o consideravam reprodutor de desigualdades e intensificador de hierarquias.
Nesse contexto, emerge o conceito de democracia cultural, que continua escasso nos discursos políticos em Portugal, que insistem na democratização, mesmo quando os indicadores disponíveis mostram que a democratização da cultura tem falhado, sobretudo em geografias mais distantes de centros urbanos e junto de pessoas com menos recursos económicos e educacionais.
Deve a democratização ser abandonada enquanto objetivo político? Não, mas deve ser acompanhada de políticas inspiradas no modelo da democracia cultural. Enquanto a democratização remete sobretudo para o acesso, a democracia abre horizontes para a criação e participação. As críticas à democratização sustentam que, nesse modelo, há artes democratizadas que são consideradas mais legítimas que outras formas de expressão consideradas menos legítimas e que correspondem a formas de expressão praticadas e consumidas por grupos sociais com menos poderes (sociais, económicos, educacionais, simbólicos). A democracia cultural encara todas as formas como legítimas, sem contrariar a lógica do acesso: reforça-a com a participação e um acesso mais alargado a formas que têm sido desconsideradas pelas políticas públicas.
Apesar de em Portugal a democracia cultural ter chegado aos discursos políticos explicitamente só em 2021, com a Carta do Porto Santo, há a realçar que 1) os discursos políticos e os programas eleitorais continuam a menosprezar o modelo da democracia cultural de forma explícita, focando-se apenas na democratização; 2) não obstante, a Constituição da República Portuguesa prevê que o Estado incentive o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural; e 3) existem vários exemplos, pelo país, de práticas próximas do modelo de democracia, onde talvez apenas falte essa consciência e a reflexão sobre tais práticas.
Em São João da Madeira, são várias as iniciativas que fazem hoje parte da programação anual do concelho e que emergem ou emergiram da comunidade e da sua vontade e capacidade de criação e participação cultural, sendo os exemplos mais expressivos o Festival de Teatro e o Festival Poesia à Mesa. Outro projeto que promoveu a participação, contando com cinco iniciativas diferentes e o apoio dos poderes políticos locais, foi o Interferências 1.0, cujos resultados continuam disponíveis a partir da página oficial da Casa da Criatividade.
Além disso, talvez não necessariamente visível aos olhos de toda a cidade, decorre um trabalho significativo de promoção e reflexão sobre participação cultural, a partir da presença frequente do Teatro Nacional D. Maria II em São João da Madeira com a implementação do programa ATOS, que tem vindo a incluir momentos de reflexão sobre o modelo da democracia cultural, uma formação de vários módulos sobre participação cultural, promoção de bolsas para microprojetos propostos pela comunidade sanjoanense, entre outras dinâmicas.
Essas dinâmicas contribuem para reforçar as práticas culturais participativas e para aproximar os poderes políticos do modelo da democracia cultural, que é apontado como sendo um modelo mais justo, menos hierárquico, mais capaz de promover a partilha de poderes entre grupos sociais e de atenuar desigualdades sociais (considerando teorias, como de Pierre Bourdieu, segundo as quais as desigualdades sociais e económicas se reproduzem no campo cultural).

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