Era apenas uma questão de tempo. Entre a primeira e a última pedra, passou quase uma década para acabar o monumento aos soldados da Grande Guerra. Tantos anos, mais ou menos, quantos o da história do hospital de Francisco Luiz Ribeiro. Entremos no mês de maio de 1915, quando A Defesa Local, número nove, página um, revelou a planta do projeto de um hábil e modesto técnico de Oliveira de Azeméis. As pessoas tinham muito tempo para ler a notícia sobre o hospital, aquele edifício simples e modesto em decorações, mas vasto e elegante para o fim a que se destina. Damos um pulo até à casa da Estrada, não muito afastada da igreja matriz, onde nasceu Luiz Ribeiro. A manhã está fresca e soalheira, é fácil imaginar, em condições normais, um céu azul. Joaquim Costa, o projetista, concebeu as traves do hospital a ocuparem a parte central da bela quinta do saudoso Luiz Ribeiro, ali ao lado da estrada número um do país, a que ligava Lisboa ao Porto. Muita coisa ia acontecendo então pelo mundo. Em finais de março, por exemplo, tinha saído em Lisboa o número um da Orpheu, juntando Pessoa, Almada, Sá Carneiro, entre outros. Uma semana antes da planta do hospital ser conhecida, ainda em Lisboa, gente exaltada assaltara armazéns e padarias à procura de comida. João Chagas foi nomeado para primeiro ministro, mas não chegou a ocupar o cargo. No Entroncamento, deram-lhe um tiro bastante lixado. Não acabaram de vez com ele, mas Chagas ficou cego de um olho.
No dia 23 de maio de 1915, houve quem olhasse embasbacado para a planta do hospital de Luiz Ribeiro. Alguém se viu a atravessar a avenida que rasgava toda a largura do pavilhão central. Eram mais de sessenta metros de frente, uma construção completamente isolada de casas. O jornalista pensava nos futuros doentes, a convalescer num edifício rodeado de luxuriante vegetação e servido por esplêndida água nativa. Acompanhemos a visita, entrando nos catorze metros do pavilhão central, com as suas galerias envidraçadas, seis janelas em cima, seis janelas em baixo. No andar de baixo, duas salas: uma para as operações e os curativos, bem iluminada; a outra para o médico de serviço e as suas consultas. Mais duas salas ainda, para a farmácia e para os serviços administrativos. O nosso visitante subiu depois ao andar nobre. Vislumbrou a sala das sessões, espreitou os quatro quartos particulares, com retrete e lavatório, e os dois quartos para os enfermeiros e os criados. Passou, por detrás das enfermarias, voltadas para nascente, por duas galerias de convalescença, com dez metros de comprido. Era também para o lado de traz que ficava a cozinha, com refeitório e copa, muito vasta e rasgada de luz e ar, a toda a largura do pavilhão central. Se tivesse tempo, ainda podia descer à cave, com um grande pé direito, por causa do declive do terreno, com vários aposentos para arrecadação, rouparia, casa de brunir ou secagem de roupa... Se saísse do hospital, o nosso visitante ainda poderia entrar na capela mortuária e espreitar pouco inspirado para dentro da casa das autópsias.

onde foi erguido o monumento aos combatentes da Grande Guerra
Em maio de 1915, coisa que se dava a conhecer sem reservas, era grande a fé e o empenho no hospital. Concluída a planta de Joaquim da Costa, estava previsto começar para breve os trabalhos de pedreiro e de carpinteiro. Escreveu o repórter: Agora só resta levantá-lo o mais depressa possível, pois são cada vez maiores as misérias que ele vem aliviar e minorar. Entrou-se no verão e nada.
Passou um ano, passaram dois anos, e nada ainda. Dois anos depois ninguém vislumbrava os alicerces do grandioso monumento de beneficência de Francisco Luiz Ribeiro. Mas não havia razões para desesperar. Oito anos depois, finalmente, em 1923, fez-se luz para o hospital. Mais algum tempo precisou o monumento aos soldados da Grande Guerra, o que lembrou os quatro mortos de França e homenageou os sobreviventes da tragédia de La Lys. Saltemos, pois, de 1928, da primeira pedra, para 1937, o da última. Era um dia de novembro e tinha acabado, antes do almoço, a liturgia matinal. Era só esperar que a coisa se voltasse a compor, como em 1928. Voltámos, à tarde, à rua Oliveira Júnior, onde as autoridades e as associações desfilaram até chegaram à frente da capela de Santo António, ao largo onde o monumento ia ser descerrado. Ninguém se esqueceu das forças vivas: da Liga dos Combatentes, claro, em lugar de destaque; do Colégio Castilho e do seu corpo docente; das escolas primárias e dos seus professores; dos sindicatos dos chapeleiros e dos sapateiros; do rancho regional com a sua orquestra ou da banda dos bombeiros voluntários; do povo, enfim, anónimo e voluntarista, a encher as ruas e o largo de Santo António, já com a nova capela e sem coreto.
Às quinze horas estava constituída a mesa da cerimónia evocativa, com António Henriques, enquanto chefe da autarquia, a presidi-la. António Henriques deve ter apontado a dedo os outros membros: José António das Neves, o administrador do concelho; Manuel Luís da Costa, vogal da comissão administrativa; o pároco António Maria d`Almeida Pinho; e José Cerqueira de Vasconcelos, o diretor do Colégio Castilho. Todos eles gostavam de se entregar aos ritos da homenagem. Como os que estavam na tribuna: os membros da comissão executiva do monumento; os representantes das agremiações locais, patronais ou operárias; o administrador d` O Regional ou os correspondentes dos jornais diários... Entre os mais circunspetos e sisudos, na tribuna, sabendo bem o que estava ali a fazer e a representar, havia um membro graduado da Legião Portuguesa. Era professor no Colégio Castilho e chamava-se António Ferreira Batista. Estavam todos muito concentrados a ouvir o hino nacional executado pelos bombeiros voluntários quando António Henriques descerrou o monumento.
Porque agora estávamos de volta ao princípio, a 1928. Fizera-o então Benjamin Araújo, voltava a fazê-lo agora António Henriques, inclinando-se vagarosamente defronte do monumento. As pombas largadas emprestaram à cerimónia uma visão de rara beleza e espiritualidade indefiníveis. Como os dois minutos de silêncio anunciados por toques de morteiros e de clarins. José Maria dos Santos procedeu depois à chamada dos quatro soldados mortos na Flandres francesa. Sempre que o nome de cada um era pronunciado, os antigos companheiros respondiam solenemente: Morreu pela pátria! Leram-se depois telegramas enviados a António Henriques: os do conde Dias Garcia, do médico Nicolau da Costa, o de Renato Araújo, porta voz da União Nacional. E ouviram--se discursos como o de Manuel Luís Leite Júnior, que falou em nome da comissão executiva. Uma lição de história, que incluía um resumo do que fora a tragédia da guerra; a razão porque surgiram os padrões e as lápides à memória dos mortos; e, mais concretamente, a iniciativa do tenente da GNR, António Gomes da Rocha, que, há nove anos, lançara a primeira pedra.
Manuel Luís Leite Júnior olhou à volta, de dedos hirtos. Estava concluída a iniciativa do tenente Rocha. A exaltação dos valentes e heroicos soldados, dos audazes e valorosos soldados portugueses que para sempre tombaram nos campos de batalha. Depois meteu o braço nos amigos. Hospital, escolas, esmolas, quase tudo, na terra, se ficava a dever a ajudas valiosíssimas de quem tinha ido viver para o Rio de Janeiro. Uma placa na base do padrão aos mortos recordaria, uns dias depois, o público e perpétuo reconhecimento aos conterrâneos brasileiros, ao conde Dias Garcia, a Manuel Leite da Silva Garcia e a José Moreira. Era aos três que os mortos não perderiam o rasto, bem guardados na pedra pelo escultor Henrique Moreira e pelo arquiteto João Queirós. Manuel Luís Leite Júnior pôde então voltar a dar a palavra ao presidente da câmara. António Henriques foi chamando, um a um, os oradores de serviço. Estavam todos repassados pela fé e devoção nacionalistas: o padre Pinho; o diretor do Colégio Castilho; Belmiro António da Silva ou José Vicente de Sousa Tavares. Nem todas eram imagens bem engomadas. Havia sempre gente que atravessava as ruas sem desmonstrações de pudor ou arrependimento, de reserva moral, levando e pagando. Ao mesmo tempo que ramos de flores cobriam o padrão, alguém se lembrou de anotar o mau exemplo deste ou daquele industrial ou comerciante da terra que não quiseram ou puderam compreender o significado desta impressionante e memorável jornada...